A cada época balnear que se inicia, as praias enchem-se de corpos seminus — uns mais que outros — deitados ao sol ou a refrescar-se no mar. E se na maioria dos casos são as tendências de moda que vão ditando se há mais ou menos tecido a cobrir o essencial, também há quem prefira obedecer exclusivamente à sua vontade, dite ela a sunga, o triquíni ou até o arrojado mankini celebrizado por Borat. Vale tudo, até o nu integral, nas praias autorizadas para o efeito.

Mas nem sempre houve esta liberdade de escolha. Nos primórdios da memória balnear em terras lusitanas, homens e mulheres despiam-se nos toldos apenas para o ato do banho propriamente dito voltando a vestir-se mal regressavam ao areal. A célebre obra de Ramalho Ortigão, As praias de Portugal: guia do banhista e do viajante, de 1876, versa sobre isso mesmo, a páginas tantas:

É importante que o banhista ao chegar à barraca, se dispa com a máxima rapidez, enfie um calção de malha de lã, se envolva numa capa ou n’um plaid e corra imediatamente para a água, desembuçando-se no momento da imersão. As senhoras devem usar a touca de gutta-percha para não molharem o cabelo e quando não tenham a touca não lhes convém mergulhar a cabeça. Basta-lhes refrescar repetidamente a fronte e o alto do crânio com a mão molhada durante o tempo que estiverem na água. Os longos cabelos molhados com água salgada produzem mais males do que aqueles que o banho é destinado a combater.”

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Até ao início do século XX, os banhos na praia tinham fins sobretudo terapêuticos.
(foto: Autor não identificado / Arquivo Municipal de Lisboa)

Os chamados códigos de posturas de alguns municípios costeiros, como Cascais ou Oeiras baniram, ainda no século XIX, os banhos em estados que ofendessem aquilo que consideravam ser a “decência pública”. Na viragem do século, os trajes foram evoluindo, tal como os hábitos e passou a ser comum ver usar-se, no caso das senhoras, fatos com saiote que foram progressivamente encurtando, deixando ver primeiro os braços, depois os ombros e, finalmente, as pernas. Mas, diga-se, sempre com muito cuidado e vergonha à mistura, para orgulho da sociedade conservadora da época.

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Em 1941, e na sequência da chegada a Portugal de muitos refugiados da Segunda Guerra Mundial que, pouco habituados aos pudores nacionais, aproveitavam as praias da Linha do Estoril para exibir os corpos, seria promulgada legislação sobre as vestimentas balneares. O decreto-lei 31:247, de 5 de maio desse ano, inseria “várias disposições sobre o uso e venda de fatos de banho”, instituindo e estabelecendo “o sistema de fiscalização e sanções a aplicar aos transgressores.” As razões do Ministério do Interior vinham explicadas no curioso introito do decreto:

Factos ocorridos durante a última época balnear mostraram a necessidade de se estabelecerem, com a precisão possível, as normas adequadas à salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam. Não se pretende restituir às praias o aspecto do século passado, nem mesmo o das primeiras décadas deste; também não impor modelos rígidos que destoem completamente do movimento da vida moderna.”

Assim, trajes balneares de homens e mulheres passariam a obedecer a regras específicas, cabendo aos cabos do mar fiscalizar o cumprimento dessas mesmas normas, específicas para homens e mulheres. A saber:

Homens

Fato inteiro em que o pano anterior se prolonga cobrindo toda a frente do calção, de costura a costura lateral. O calção deve ser justo à perna, de corte direito e terá um comprimento de perna mínimo de dois centímetros. A frente do fato, qualquer que seja a forma do decote, deve cobrir a parte anterior do tronco, tapando os mamilos. As costas podem ser decotadas até à cintura.”

Senhoras

O fato de banho deve ser inteiro e ter saiote fechado. O calção interior é justo à perna, de corte direito e deve ter o comprimento de perna mínimo de dois centímetros. O saiote, que pode ser independente do corpo do fato, terá o comprimento necessário para exceder, pelo menos de um centímetro, a extremidade inferior do calção depois de vestido. A frente do fato deve cobrir a parte anterior do corpo, não podendo o decote ser exagerado, a ponto de descobrir os seios. As costas poderão ser decotadas até dez centímetros acima da cintura, sem prejuízo do corte das cavas que devem ser, quanto possível, cingidas às axilas.”

Em ambos os casos não era permitido o uso de fatos que se tornassem “imorais pela sua transparência”. As raparigas até aos 10 anos e os rapazes até aos 12 estavam dispensados das normas supracitadas, exceto “nos casos de desenvolvimento precoce”.

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Um edital a definir as condições mínimas dos fatos de banho.
(foto: DR / historicando.blogspot.com)

As multas para os prevaricadores podiam chegar aos 5000 escudos (25€), uma exorbitância para a época, e estendiam-se a todos aqueles que vendessem fatos de banho que não cumprissem as regras estabelecidas. Consta que após a introdução da lei os banhistas estrangeiros fizeram chegar os seus protestos a quem de direito e, para eles, esta nunca foi exercida com grande rigor. Já no caso dos portugueses havia, de facto, fiscalização séria.

Com o passar dos anos, no entanto, os editais foram-se tornando mais liberais, graças, sobretudo, ao número crescente de turistas estrangeiros que se tornaram visita habitual das praias nacionais. Com o 25 de abril a liberdade chegou às ruas e aos areais. Até hoje.