O argumentário é o de sempre: privacidade versus segurança. De um lado, Governo, PSD, CDS e PS, a dizerem que a Constituição deve ser lida à luz atual, do outro, Bloco de Esquerda e PCP, com os deputados Luís Fazenda e António Filipe a debaterem-se ferozmente “contra a ideia de que é preciso liquidar as liberdades individuais para combater o terrorismo”. Em causa no debate desta tarde no Parlamento estava a proposta de lei do Governo de reforço dos poderes do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) que visa dar aos serviços secretos a possibilidade de aceder a metadados, isto é, a dados de faturação telefónica e de localização dos cidadãos, assim como a dados bancários e fiscais.

Do lado do Governo, a defender a proposta, estava Luís Marques Guedes, ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, que começou logo por dizer que as secretas portuguesas estavam “desarmadas” para lutar contra fenómenos de terrorismo e de criminalidade altamente organizada e que, por isso, era preciso legislar no sentido de alargar a sua capacidade de intervenção. O caso do jovem ligado ao Estado Islâmico que matou a tiro quase 40 pessoas num resort na Tunísia esta sexta-feira foi lembrado a esse propósito.

Para Marques Guedes, e respondendo às críticas dos partidos mais à esquerda no Parlamento, dotar as secretas da possibilidade de acederem a dados de tráfegos das comunicações – “não ao conteúdo, não às escutas, apenas aos metadados” – não vai contra a Constituição nem contra as liberdades e direitos individuais à privacidade. “Quem vai contra a Constituição e o Estado de Direito são os terroristas, o que é inconstitucional é decapitar pessoas, é pôr bombas para matar milhares de pessoas, isso é que é inconstitucional”, disse o ministro já na sua intervenção final no Parlamento.

O Governo foi apoiado não só pelos deputados da maioria, mas, desta vez, também pela bancada do PS que alinhou no pacote anti-terrorismo desde o início, por ser uma “questão de Estado”, e que já fez saber que está de acordo com o reforço do poder das secretas nesta base. Ainda que admita algumas alterações.

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Teresa Leal Coelho, do lado do PSD, reforçou que se trata do acesso a metadados e não a conteúdos e que, em todo o caso, esse acesso estará sempre sujeito a “uma autorização prévia e obrigatória de uma comissão judicial”. E mais: que em 1976, aquando da redação da Constituição, “o que estava no espírito do legislador era impedir a interceção de conteúdos e não de metadados”, disse, apelando a que se fizesse uma leitura mais “atualizada” da Constituição.

Também o deputado centrista Telmo Correia defendeu com unhas e dentes a proposta do Governo, deixando inclusive uma alfinetada aos deputados que fazem “votos de pesar pelas vítimas de terrorismo” mas que depois, “na hora de legislar, de dotar os nossos serviços secretos de mecanismos sérios, já não querem”. Telmo Correia arriscou mesmo uma resposta para desbloquear o impasse: “É na ponderação de direitos e valores que tem de estar a resposta”. Ou seja, concluiu o deputado do CDS, o valor da proteção da vida humana “vale mais” do que o valor da privacidade e da proteção das comunicações, que, ainda assim, tem de ser respeitado.

BE e PCP dizem que “é inconstitucional”, PS apoia mas quer “aperfeiçoamentos”

Um argumento que não caiu bem junto do BE e do PCP, com o deputado comunista António Filipe a dar o rosto pela indignação. Começando por acusar a proposta de lei de ser “grosseiramente inconstitucional”, a bancada do PCP rejeitou a ideia do ‘vale tudo’ no que ao combate ao terrorismo diz respeito: “o que aqui está em causa é um mecanismo que permite a devassa da vida privada de qualquer cidadão”, disse, alertando para as “derivas securitárias” que podem vir associadas à luta anti-terrorismo. Também Luís Fazenda seguiu a mesma linha de raciocínio, defendendo que “não compete aos serviços de informações, mas antes aos serviços de segurança, o combate ao terrorismo”. E que, se a proposta de lei for para a frente, os portugueses vão passar a ter a sua vida “vigiada”. Em suma, “é grosseiramente inconstitucional”, disseram.

O PS, por seu lado, está desta vez mais ao lado do Governo e está disposto a fazer alterações e “aperfeiçoamentos” para melhorar o diploma, afirmou o deputado Jorge Lacão, depois de admitir que, ainda assim, podem ser feitas duas leituras, caso se entenda que o acesso aos metadados (dados de tráfego e localização das comunicações) é considerado uma ingerência nas comunicações, ou não. Ou seja, consoante a leitura depende a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da medida.

“Uma alteração legislativa que permita aos serviços de informação aceder a dados de tráfego e de localização relativos às comunicações configura-se como uma ingerência nas comunicações? Para os que respondem afirmativamente à pergunta (…) não restam dúvidas de que a solução proposta é inviável por inconstitucional. E, pela parte do PS, admitimos perfeitamente que o teste da constitucionalidade possa ocorrer. Mas os que entendem que, tratando-se indiscutivelmente de dados sensíveis, a obtenção dos mesmos não implica ingerência no conteúdo mesmo das comunicações, então o tema pode ser visto com outra luz e admitir uma solução legislativa fora do âmbito do processo criminal”, disse Jorge Lacão. Ou seja, se for feita esta leitura, é constitucional.

Para Jorge Lacão, contudo, o acesso aos dados não é o mesmo do que o acesso ao conteúdo e, por isso, a medida em causa é “uma exigência urgente do próprio Estado democrático para a proteção da democracia”, e retira Portugal do “isolamento”, por ser dos únicos países na Europa onde os serviços de informação não dispõem deste tipo de mecanismos.

“É esta a solução constante da proposta de lei em apreço e é esta solução que, sem prejuízo do seu aperfeiçoamento na especialidade, o PS se mostrou disponível para admitir”, sublinhou.

Menos consensual é a questão do registo de interesses, com Lacão a apontar o dedo à “ambivalência de orientações” de PSD e CDS no tema das secretas. “Enquanto o PS se empenha num entendimento consistente e alargado”, disse, a maioria apresenta uma proposta “relativa ao tratamento dos registos de interesses que despreza a elevada sensibilidade exigível à proteção daqueles que têm uma função institucional a desempenhar no sistema”. Assim sendo, a bancada socialista irá fazer “aperfeiçoamentos” à proposta de lei, anunciou o deputado.

De resto, também a deputada social-democrata Teresa Leal Coelho e o deputado centrista Telmo Correia se mostraram disponíveis para fazer alterações ao diploma em sede de especialidade, “no sentido de o melhorar”. Mas nem PSD/CDS, nem PS especificaram que alterações são essas, ou até onde estão dispostos a ir. A votação da proposta de lei, na generalidade decorre sexta-feira, no Parlamento.