O que faz um cineasta quando o regime do seu país, uma teocracia autoritária, o condena a prisão domiciliária e proíbe de filmar durante 20 anos? Das duas, uma: ou obedece e fica muito sossegadinho, ou comporta-se como o iraniano Jafar Panahi (“O Círculo”, “Sangue e Ouro”, “Offside-Fora-de-Jogo”). Aproveita a miniaturização e a portabilidade das câmaras digitais e vai rodando filmes à socapa, que os amigos contrabandeiam para fora do país (em “pens” metidas dentro de bolos, por exemplo) e são exibidos e distinguidos nos festivais de cinema internacionais. Assim foi com “Isto Não é um Filme” (2011), rodado no apartamento de Teerão do realizador e exibido em Cannes; com “Pardé” (2013), feito na sua casa de férias à beira-mar e vencedor de Melhor Argumento em Berlim; e agora com “Táxi”, Urso de Ouro no mesmo festival este ano.

Inspirado em “Dez”, do seu compatriota Abbas Kiarostami, de que aliás foi assistente, Panahi arranjou um táxi de tejadilho aberto para ter luz suficiente para a filmar, e pôs três câmaras digitais numa caixa de lenços de papel para não serem vistas. E depois saiu com o carro para as ruas de Teerão, fazendo de “Táxi” um exemplo de desafio aos que entravam a liberdade de expressão e de criação artística, um hino ao cinema digital como ferramenta criativa e política e uma amostragem transversal da sociedade iraniana contemporânea.

“Trailer” de “Táxi”

O cineasta começou por pensar fazer “Táxi” com cidadãos anónimos, que filmaria com o seu iPhone. Mas desistiu depois de um dos passageiros lhe ter pedido para desligar a câmara, em nome da sua privacidade. Por isso, e para não pôr ninguém em perigo, Panahi decidiu encenar todo o filme, recorrendo a pessoas sem experiência de representação, entre anónimos, conhecidos, amigos e familiares. Estes tanto protagonizam momentos de comédia, caso do motociclista abalroado por um carro, que pensa que está a morrer e pede o telemóvel do realizador para se filmar a fazer o testamento e deixar tudo à mulher e não aos seus gananciosos irmãos, ou das duas mulheres cheias de pressa que levam um peixinho vermelho num aquário; como permitem a Panahi expôr assuntos da actualidade no Irão, como a dificuldade em se ver filmes estrangeiros (e como o mercado paralelo funciona para colmatar o problema), a pena de morte, a delinquência, os direitos do homem, a proibição das mulheres assistirem a acontecimentos desportivos com os homens, ou as regras de bom gosto da república islâmica aplicáveis ao cinema.

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Cena de “Táxi”

Estas são referidas no episódio em que o cineasta põe em cena a sua espigadota sobrinha adolescente, que vai buscar à escola e que, câmara digital nas mãos, comunica ao seu célebre tio que tem que fazer um filme onde deverá ter que evitar, entre outros tópicos enunciados pelo professor, “o realismo sórdido” – uma realidade que ela irá enfrentar poucos minutos depois, para sua grande aflição e com o tio fora do carro, quando filma um rapazinho que, em vez de devolver ao seu proprietário o dinheiro que achou chão, o mete no bolso.

https://youtu.be/g30MejRyvLo

Sobrinha do realizador recebe o Urso de Ouro em Berlim

Apesar de arriscar ser detectado e apanhado a qualquer momento – o seu “disfarce” é um mero boné -, Jafar Panahi nunca pára de sorrir do princípio ao fim do filme, que enche com o seu bom humor, ora pincelado de ironia, ora de sarcasmo. “Táxi” é um filme astuto, tolerante, ágil e corajoso, onde Panahi diz e revela mais sobre a realidade, a complexidade, o quotidiano, os problemas, as tensões e as pessoas do Irão de hoje, do que mil telejornais ou programas das televisões do Ocidente. E que volta a mostrar que de uma sociedade vigiada e censória como a iraniana, pode sair algum do melhor cinema que se faz hoje no mundo.