Título: West Germany and the Portuguese Dictatorship, 1968-1974. Between Cold War and Colonialism.
Autor: Rui Lopes
Editora: Palgrave-Macmillan
Páginas: 269
Preço: £ 60
Língua: inglês

9781137402073

Em Portugal, as relações luso-alemãs estão na ordem do dia. Em virtude da posição-chave (alguns diriam hegemónica) detida pela Alemanha na Eurolândia, todos os caminhos da política europeia de Portugal passam agora por Berlim. Os programas de resgate que dominaram a agenda política e económica da Irlanda, Grécia e Portugal desde 2010-11 foram basicamente desenhados em função das preocupações e prioridades ditadas pela chanceler Merkel, uma governante extraordinariamente bem-sucedida em termos domésticos, mas cujo desempenho na arena internacional está longe de suscitar apreciações lisonjeiras da parte dos grandes patriarcas da política alemã, do ex-chanceler do SPD, Helmut Schmidt, ao seu antigo mentor na CDU, Helmut Kohl. Em Portugal, as opiniões também se dividem. Enquanto a coligação no poder enveredou por uma postura de colagem às posições germânicas (a estratégia testada do “bom aluno”), a esquerda mais radical, aqui se incluindo o antigo líder do PS, Mário Soares, raramente perde uma oportunidade para denunciar aquilo que vê como a atitude “capitulacionista” de Lisboa em relação a Berlim e à sua opção por uma austeridade punitiva.

Nas últimas décadas é difícil encontrar um período em que os destinos de Portugal e Alemanha estivessem tão intimamente ligados. É certo que nos anos 1960 a Alemanha Ocidental se constituiu como um dos mais relevantes parceiros comerciais de Portugal, um dos três maiores investidores no nosso país, e um dos principais destinos da emigração portuguesa. Portugal e a Alemanha eram ambos membros da NATO e os alemães tinham no aeródromo de Beja uma importante base para o treino dos pilotos da Luftwaffe. Durante a transição à democracia em 1974-76, partidos, sindicatos e fundações alemãs intervieram de forma mais ou menos aberta nas lutas políticas e sociais portuguesas, canalizando expertise e financiamentos para as forças partidárias moderadas.

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Para políticos como Soares, a caução do SPD, o mais antigo partido social-democrata europeu e o grande esteio da Internacional Socialista, provou ser um trunfo irresistível. Depois da nossa adesão à CEE em 1986, o relacionamento luso-alemão parecia estar encaminhado para um progressivo estreitamento, sendo a abertura da fábrica da Autoeuropa, do grupo Volkswagen, em 1991, um dos marcos mais relevantes dessa trajectória. Na década de 1990, porém, tanto a reunificação e os seus custos, como a reorientação estratégica da Alemanha para o Leste, esmoreceram essa dinâmica. O pêndulo da política externa portuguesa voltou a deslocar-se para o Atlântico. Em 2002-03, por exemplo, no auge da crise motivada pela iminente invasão do Iraque, Portugal preferiu alinhar com as posições de Washington e Londres, guardando as suas distâncias em relação ao eixo Paris-Berlim. Hoje, uma opção dessas seria quase impensável.

Embora reportando-se a um período mais recuado (1968-74), o livro de Rui Lopes, o resultado de um projecto de doutoramento desenvolvido na London School of Economics, irá muito provavelmente beneficiar da maior curiosidade do público português pelas circunstâncias em que se produziu a afirmação do poderio alemão nas últimas décadas. Um dos momentos-chave dessa afirmação deu-se com o lançamento da chamada Ostpolitik, a estratégia de diálogo com o Leste comunista que se tornou a grande iniciativa de política externa da coligação entre o SPD e os liberais do FDP liderada pelo chanceler Willy Brandt, o primeiro social-democrata a alcançar essa posição em quase 40 anos. Embora muito contestada pelas forças políticas mais conservadoras da República Federal Alemã, e olhada com alguma suspeição em Washington, a política de abertura a Leste rapidamente conquistou a adesão de uma larga maioria do eleitorado alemão. Desde logo, a normalização de contactos com a República Democrática Alemã e outros países da Cortina de Ferro ajudou a mitigar muitos dos dramas humanos provocados pela divisão da Alemanha no pós-II Guerra Mundial, e foi ao encontro dos desejos de paz e segurança que estiveram subjacentes à atmosfera de détente que entretanto se instalara na Europa.

Willy Brandt durante a visita a Varsóvia em 1970

Willy Brandt durante a visita a Varsóvia em 1970  (AFP/Getty Images)

Com o seu gosto pelos gestos simbólicos (o mais famosos dos quais terá sido a homenagem que em 1970 prestou às vítimas da revolta do ghetto de Varsóvia, numa visita à capital polaca), Brandt, prémio Nobel da Paz em 1971, ganhou uma autoridade moral que nem a sua demissão em 1974, na sequência de um “escândalo” político que hoje nos parece um banal fait-divers (a descoberta de um espião da STASI no seu núcleo duro de colaboradores), abalou significativamente. Apesar de todos os compromissos que um governante tem de negociar em democracia (veja-se a peça de teatro que Michael Frayn dedicou a esse tema, tendo Brandt como personagem principal), o chanceler do SPD é hoje considerado um dos gigantes da política europeia do pós-guerra.

Não procurando exactamente pôr em xeque essa imagem, a abordagem revisionista de Rui Lopes vem no entanto abrir a discussão sobre a complexa gestão entre interesses e moralidade na política prosseguida pela Alemanha em relação ao regime autoritário e colonialista de Marcelo Caetano. Até aqui, a versão dominante (subscrita também pelo autor destas linhas) era a de que a chegada dos sociais-democratas ao poder na Alemanha, sobretudo a partir da formação do governo liderado por Brandt, em 1969, representara senão um corte pelo menos uma viragem na linha mais acomodatícia dos executivos dominados pelos democratas-cristãos para com a ditadura portuguesa. Essa busca de uma demarcação face ao Estado Novo ter-se-ia traduzido, entre outras medidas, por um desinvestimento na cooperação estreita que os dois estados vinham desenvolvendo no domínio militar desde 1960, no maior envolvimento do SPD em acções de solidariedade para com os movimentos independentistas das colónias portuguesas e, acima de tudo, no apoio dado a Mário Soares e à fundação do Partido Socialista em Abril de 1973, em território alemão.

A partir de uma investigação meticulosa, realizada em vários países, Rui Lopes vem virar esta interpretação do avesso. De forma persuasiva, o seu estudo revela como era afinal ilusória a ideia de uma Südpolitik alemã alegadamente apostada no retirar do tapete à autocracia portuguesa. Tal como outros autores vieram também demonstrar para o caso espanhol (veja-se El Amigo Aleman, de Antonio Muñoz Sanchez), se a abordagem de Brandt em relação à Europa do Sul possuía alguma simetria com a Ostpolitik, isso jogava a favor da manutenção das ditaduras de Caetano e Franco, pelo menos no curto prazo. A fórmula da Ostpolitik era, recorde-se, “a mudança através da aproximação”, um slogan que tinha subjacente a ideia de que a liberalização dos regimes de Leste se realizaria faseadamente, num quadro de estabilidade, graças a uma intensificação dos contactos com as sociedades abertas, dinâmicas e democráticas do Ocidente. Ainda hoje, aliás, o impacto da via gradualista de Brandt é objecto de discussão, havendo quem argumente que o preço a pagar pelo diálogo com o Leste foi a legitimação internacional das ditaduras comunistas da Cortina de Ferro.

BERLIN - MAY 29:  East German guards watching over the Berlin wall during Queen Elizabeth and Prince Philip's visit to the city on May 29, 1965.   (Photo by J Wilds/Getty Images)

O muro de Berlim, construído pela ditadura comunista da RDA e símbolo da Cortina de Ferro que dividiu a Europa durante a Guerra Fria (Photo by J Wilds/Getty Images)

No caso de Portugal, quais eram os elementos que jogavam a favor de uma linha de continuidade relativamente às políticas do passado? Segundo Rui Lopes, a resposta a essa questão dever ser procurada no âmbito daquelas influências que geralmente fazem prevalecer uma lógica de interesses e de raison d’État na política externa. Uma dessas influências era a dimensão económica dos laços bilaterais.

Tanto naquela época como nos dias de hoje, boa parte do músculo económico da Alemanha resultava do desempenho do seu sector exportador, dos benefícios resultantes da concessão de créditos a países terceiros, ou dos dividendos gerados pelas suas multinacionais. Sendo Portugal um mercado apetecível para as exportações alemãs (em 1969, a RFA ultrapassou o Reino Unido como o principal parceiro comercial de Portugal), e um local atraente para o investimento alemão (graças à existência de matérias-primas locais, baixos custos de produção e uma fiscalidade moderada), não admira que os seus responsáveis insistissem que o comércio deveria ser encarado como uma esfera separada da política externa.

Se nalgumas áreas essa distinção não se revelou demasiado problemática, noutras, porém, a natureza do regime e das suas políticas foi-se tornando uma fonte de embaraços para Bona. O caso mais flagrante foi, sem dúvida, o do empreendimento de Cahora Bassa, o mais emblemático projecto do colonialismo tardio de Portugal, e um alvo óbvio para as iniciativas de protesto da Frelimo e dos activistas anti-coloniais um pouco por todo o Ocidente. Com várias firmas alemãs a integrarem o consórcio vencedor (a ZAMCO), Brandt viu-se obrigado a recorrer, nesta como noutras situações, a argumentos formalistas que, como é óbvio, não convenceram os seus críticos – segundo o chanceler, uma vez que o seu governo tinha herdado o dossier Cahora Bassa do executivo anterior, rasgar esse compromisso equivaleria a trazer de volta a diplomacia “fora-da-lei” do nazismo, com os correspondentes danos para a credibilidade externa da RFA. Este tipo de raciocínio seria, de resto, usado de amiúde sempre que a atitude mais lenitiva de Bona em relação a Caetano era criticada pelos sectores progressistas do SPD que se reviam na Ostpolitik: se valia a pena dialogar “construtivamente” com os regimes do Leste europeu, então porquê adoptar outro critério em relação ao autocrata português, tanto mais que este até possuía um perfil liberalizante e modernizador – uma ilusão alimentada, entre outros, pela embaixada alemã em Lisboa, mas que o próprio Willy Brandt parecia aceitar.

Através de uma série de estudos de caso minuciosamente apresentados, desde os fornecimentos militares às posições diplomáticas de Bona face à questão colonial portuguesa, Rui Lopes vai demolindo o mito de uma Alemanha social-democrata hostil à ditadura marcelista. Mesmo o simbolismo do apoio da Fundação Ebert ao lançamento do PS em Bad Münstereifel é relativizado, na medida em que a liderança do SPD tomou as suas precauções para não se comprometer demasiado com uma iniciativa que poderia ter repercussões negativas no relacionamento oficial com Portugal (um ponto já feito por Rui Mateus, o antigo secretário das relações internacionais do PS, no seu livro de ajuste de contas com Mário Soares, Contos Proibidos, publicado em 1996).

Foto da Fundação do PS, 1973

Fundação do PS na Alemanha, 1973

Tudo somado, porém, o final desta história não deixa de ser irónico. Depois de Abril de 1974, para Soares e os socialistas portugueses o que fazia sentido era puxar pelos galões e exibir as suas ligações à social-democracia alemã, varrendo para debaixo do tapete algumas das frustrações do exílio. Para Brandt, esse mito punha-o a salvo de perguntas embaraçosas. Agora, graças à investigação de Rui Lopes, sabemos como tudo foi mais ambíguo – como é próprio da boa história.

Pedro Aires Oliveira é historiador e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.