Depois de PSD e CDS terem aprovado sozinhos no Parlamento o projeto de lei que criminaliza o enriquecimento injustificado, o Presidente da República pediu a fiscalização preventiva do diploma, sendo que o prazo para a decisão terminava amanhã. Criar um novo tipo de crime sobre o enriquecimento injustificado ou desproporcionado está ou não conforme a Constituição? O TC decidiu esta segunda-feira, e decidiu que não. As duas normas que tinham suscitado dúvidas a Cavaco Silva foram chumbadas.
O anúncio do chumbo foi feito pela vice-presidente do TC, Maria Lúcia Amaral, tendo a decisão sido tomada por unanimidade.
Logo de seguida, foi a vez de o presidente do Tribunal Constitucional, Joaquim de Sousa Ribeiro, falar aos jornalistas para prestar mais esclarecimentos sobre a decisão. Segundo Sousa Ribeiro, para os juízes do TC “a sanção penal é uma sanção forte relativamente ao direito fundamental da liberdade e, portanto, essa sanção tem de estar justificada perante a Constituição”. O que não acontece neste caso. “As restrições aos direitos fundamentais devem limitar-se ao essencial”, sublinhou. No entender dos juízes, “o princípio da necessidade e ainda o princípio da presunção da inocência” não estão assegurados.
Um dos erros apontados pelo presidente do TC é a falta de “precisão” do diploma. “Esta incriminação nos modos em que vem formulado não refere um estado de coisas, uma situação, não aponta com o mínimo de precisão uma ação ou uma omissão que possa ser alvo de uma censura jurídico-penal”, disse. “Foi esse conjunto de razões que levaram o Tribunal a pronunciar-se, e de forma unânime, pela inconstitucionalidade, isto no que diz respeito a ambas as normas”, sublinhou.
Em comunicado, o TC precisou que o diploma evidenciava uma violação dos princípios da legalidade penal e da necessidade de pena e que, “logo na formulação do tipo criminal, e pelo modo como ele foi construído, se contrariava o princípio da presunção da inocência”.
“O TC entendeu que a incriminação do ‘enriquecimento injustificado’, tal como feita pelo decreto da Assembleia da República, não só não cumpre as exigências decorrentes do princípio da legalidade penal como, ao tornar impossível divisar qual seja o bem jurídico digno de tutela penal que justifica a incriminação, viola o princípio da necessidade de pena. Considerou-se ainda que, logo na formulação do tipo criminal e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio da presunção de inocência, entendido na sua dimensão substantiva”, lê-se.
Em causa estava o diploma aprovado no Parlamento pelos partidos da maioria, ainda que com o chumbo de toda a oposição, que enveredava pela via penal, criando um novo tipo de crime de “desproporção” entre o património e os rendimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
Quando fez o pedido de fiscalização preventiva do documento ao TC, Cavaco Silva dizia ter dúvidas sobre a conformidade daquela lei com os “princípios do Estado de direito, da proporcionalidade, legalidade penal e presunção de inocência”. “Numa área com a sensibilidade do Direito Penal, onde estão em risco valores máximos da ordem jurídica num Estado de direito como a liberdade, não pode subsistir dúvida sobre a incriminação de condutas, tanto mais que a matéria em causa foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional tendo, então, merecido uma pronúncia de inconstitucionalidade”, dizia o Presidente da República em nota divulgada no site da Presidência.
As dúvidas de Cavaco Silva recaiam especificamente sobre as seguintes normas:
- Nº 1, artigo 1 que adita o artigo 335.º-A ao Código Penal: “Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de prisão até 3 anos” – pena que pode ser agravada até cinco anos se a discrepância for superior a 500 salários mínimos. Este artigo refere-se à desproporção de património e rendimentos de todos os cidadãos, no geral.
- Nº 2, que adita o artigo 27.º-A: “O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva obtiver um acréscimo patrimonial ou fruir continuadamente de um património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou a declarar, é punido com pena de prisão de um a cinco anos” – pena que pode subir até um máximo de 8 anos se a discrepância for superior a 350 salários mínimos. Este ponto já diz respeito apenas aos titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos, prevendo-se aqui penas mais pesadas.
Ambas foram agora declaradas inconstitucionais pelo TC.
Take 2
Na altura da aprovação do diploma no Parlamento, em junho, PS, PCP e BE manifestaram-se contra, antevendo que a maioria iria voltar a “bater com a cabeça na parede” do Tribunal Constitucional, e que, se o TC viesse mesmo a decretar a inconstitucionalidade do projeto de lei, a mensagem que chegaria aos portugueses seria de que “os senhores deputados fizeram de propósito”, chegou a dizer o comunista António Filipe no Parlamento.
Mas as críticas não vieram só das bancadas opostas. Quando o diploma foi aprovado, em junho, também o ex-vice-presidente do PSD e ex-juiz do TC Paulo Mota Pinto considerou que o projeto levantava “sérias reservas” de constitucionalidade e de “conveniência político-criminal”. Numa declaração de voto depois de ter votado a favor do diploma, Mota Pinto afirmava mesmo que o PSD e CDS não tinham conseguido superar “algumas das objeções de incompatibilidade, como a presunção da inocência”, que tinham sido motivo do primeiro chumbo.
Esta já é, portanto, a segunda vez que os juízes do Palácio Ratton chumbam a tentativa dos partidos de criminalizarem o enriquecimento ilícito ou injustificado. A primeira vez foi em 2012, quando o PSD, CDS, BE e PCP aprovaram no Parlamento, contra a vontade dos socialistas, uma proposta de criminalização do enriquecimento ilícito que acabaria chumbada pelo TC.
Nessa altura, depois de Cavaco Silva ter pedido a apreciação, os juízes entenderam que o diploma violava “os princípios constitucionais da presunção da inocência e da determinabilidade do tipo legal” e a proposta de lei acabou por cair. Os juízes discordaram do facto de ser o arguido a justificar a proveniência dos bens por considerarem que isso violava direitos e garantia, por inverter o ónus da prova e, por outro, consideraram que não havia bem jurídico atendível, ou seja, não havia um novo valor jurídico que justificasse a autonomização do crime de enriquecimento ilícito.