Eu juro que me preparei bem para ouvir este debate. Tentando aumentar ao máximo a minha concentração, acordei cedo, fiz vinte flexões, tomei um pequeno-almoço digno de novela brasileira (3 tipos diferentes de sumos naturais, pão com e sem sementes, papaia vinda directamente da Amazónia e, muito importante, bolo) e ingeri três cafés (mentira: quatro). De reserva, tinha ainda ao meu lado quatro latas de uma bebida energética, que consumi de forma frenética. O meu cérebro já não estava tão espectacularmente alerta desde 1982, mas, mesmo assim, houve muitas coisas que não percebi ao fim da hora e meia que durou este segundo debate entre o dois candidatos a primeiro-ministro. Quem me puder esclarecer sinta-se à vontade para usar de forma generosa a caixa de comentários desta página.

1) Quando se candidatou à liderança do PS, António Costa avisou, com o dedo estendido, que depois de ser eleito primeiro-ministro iria exigir à Europa que fizesse “uma leitura inteligente e flexível” do Tratado Orçamental. Agora, com o dedo ligeiramente menos estendido, anunciou que entretanto a Comissão Europeia já fez “uma leitura inteligente e flexível” do Tratado Orçamental. Não percebi: afinal, a Europa dos neo-liberais e da “senhora Merkel” consegue ser “inteligente e flexível” mesmo sem ter o intimidante dedo estendido de António Costa a cutucar-lhe o nariz?

2) Apesar de a “leitura inteligente e flexível” do Tratado Orçamental que defendia já existir, António Costa não se dá por satisfeito e diz que “é importante que esta mudança prossiga”. Não percebi: afinal, bastava “uma leitura inteligente e flexível” do Tratado Orçamental ou era preciso “uma leitura inteligentíssima e flexibilíssima”?

3) Pedro Passos Coelho insistiu repetidamente que todos os partidos da família europeia do PS adoptaram políticas de austeridade logo que chegaram ao governo – e até elogiou as reformas do primeiro-ministro socialista italiano. O seu raciocínio é simples: o PS promete muitas coisas em campanha, mas quando chegar ao governo vai ser obrigado a manter as mesmas políticas, tal como aconteceu lá fora. Não percebi: se é assim, e se o PS fará no Governo o contrário daquilo que anuncia, então onde está o risco para o país de uma vitória dos socialistas?

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4) António Costa defende que as desgraças que nos aconteceram nos últimos quatro anos não foram uma exigência da Europa, mas o efeito das perversidades ideológicas do neo-ultra-hiper-liberal Pedro Passos Coelho. Não percebi: se a União Europeia é assim tão sensata nas suas exigências, então porque é que o líder do PS diz que é necessário mudar as políticas de Bruxelas?

5) António Costa afirmou, sem pestanejar: “O nosso problema, pior do que a troika, é este governo”. E explicou: a troika não queria mexer no 13.º nem no 14.º mês, não previa o nível de aumento de impostos que o governo acabou por impor e exigia que o “ajustamento” fosse feito a 2/3 pelo lado da despesa e a 1/3 pelo lado da receita. Não percebi: então, na opinião do líder do PS, o Memorando de Entendimento da troika era moderado e, Deus nos livre, acertado?

6) No primeiro debate, Pedro Passos Coelho falou uma dezena de vezes no nome de José Sócrates. No segundo, nem uma. Não percebi: aquele que era um grande perigo para o país deixou magicamente de ser um grande perigo para o país?

7) Falando sobre as propostas do PS para a lei laboral e sobre o chamado mecanismo conciliatório de cessação de contratos, António Costa esclareceu: “O que é que nós queremos? Nada de mais”. Não percebi: se o PS não quer “nada de mais”, isso significa que a as mudanças introduzidas pelo actual governo na lei laboral são aceitáveis e que não são precisas grandes mudanças?

8) O líder do PSD gabou-se de ter sido o governo a pagar 40% da dívida de Lisboa, através da compra dos terrenos do aeroporto, e acusou António Costa de não ter cumprido muitas promessas que fez durante a campanha autárquica. Não percebi: Passos Coelho é candidato a primeiro-ministro ou a presidente da Câmara de Lisboa?

Nota final:

Admito que Pedro Passos Coelho e António Costa não tenham qualquer responsabilidade nestes meus problemas de compreensão. Muito possivelmente, eles foram de uma imbatível clareza mas acabaram prejudicados pelos irritantes problemas técnicos que se verificaram ao longo da emissão. Afinal, o líder do PS também não conseguiu perceber a pergunta que lhe foi feita mais de 122 vezes sobre quais as prestações sociais que pretende sujeitar a “condição de recursos” caso seja eleito. Os microfones estavam com defeito, só pode ser isso.

  • jornalista

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