A vida de Kiko Martins podia resumir-se em duas palavras: viagens e comida. Tem 36 anos e também deve ter bicho-carpinteiro: em 2003 arrumou o diploma de Gestão de Marketing na gaveta e quis ir para Paris aprender as artes culinárias com os melhores. E aprendeu mesmo. Passou por cozinhas de altíssimo gabarito (The Fat Duck, Ledoyen ou Eleven), mas foi então que resolveu deixar o avental de lado por uns tempos: casou-se, fez a mala e foi dar a volta ao mundo com a mulher. Juntos sentaram-se à mesa com famílias de 26 países.
Quando regressou a Lisboa, abriu dois restaurantes, O Talho (em 2013) e a Cevicheria (no final de 2014), que o catapultaram para a primeira linha dos chefs da nova geração na capital. Depois de Comer o Mundo – título do seu primeiro livro, fruto dessa grande aventura planetária –, chegou a hora das Jantaradas.
No fundo, é uma espécie de ‘se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé’. Ou seja, se ainda não entrou nos seus restaurantes alfacinhas, pode ter o chef Kiko à sua mesa – a de lá de casa. Não o chef em pessoa, mas as 80 receitas reunidas neste livro, que são um pouco o resultado dessas viagens pelos quatro cantos do globo.
São menus completos para 20 jantares (petisco, entrada, prato principal e sobremesa), onde Kiko Martins cruza sabores de diferentes latitudes, baralha e torna a juntá-los em combinações menos óbvias: o resultado é um “quinoto” (um risoto peruano, que leva quinoa em vez de arroz) de bacalhau e salada de espinafres; couscous de líchias, laranja, gengibre e mascarpone; ou tapioca, transformada em sobremesa tropical (com manga, coco e curd de maracujá).
Para os mais gulosos, ficam as palavras mágicas: mousse de chocolate branco com wasabi e framboesas; leite-creme de erva-príncipe com mirtilos; folhado de nozes e amêndoas com granizado de lima ou uma pavlova de morangos com redução de vinho do porto – um merengue com nome de bailarina russa e que também surte uma espécie de efeito Pavlov: faz salivar só de ler.
Claro que nestas páginas não podia faltar aquilo que deu fama ao seu restaurante O Talho. Da picanha ao sal, aos lombinhos de porco com berbigão, passando pelos tacos de secretos de porco, a ideia não é resistir às tentações da carne. Nem do peixe, ou não fosse ele a estrela da Cevicheria (na sua forma crua e marinada em lima e picante – o ceviche, de origem peruana). Tártaro de salmão asiático com salada de milho, peixe no forno com leite de coco… e por aí fora: o mundo é o limite.
Mais um ponto positivo deste livro: não há listas quilométricas de ingredientes, daquelas cheias de nomes estranhos que não se faz ideia do que sejam nem de onde se encontre tal coisa. Tirando meia dúzia de exceções mais exóticas – como as algas nori (usadas no sushi), o tahini (pasta de sésamo) ou a harissa (pasta picante, do Norte de África), à venda em lojas de produtos naturais e supermercados asiáticos –, tudo o resto é familiar à maioria das despensas, e na pior das hipóteses encontra-se na zona gourmet dos hipermercados (é o caso do azeite de trufa e de cereais como o bulgur ou a quinoa).
E nos dias em que apetece inventar pouco também há alternativas. Lado a lado com esta diversidade geográfica, estão paladares bem portugueses, como o folhado de alheira com arroz de grelos, os crepes de requeijão de Seia com pera rocha e moscatel ou o bacalhau à moda da mãe. A lembrar aquele conforto que traz, depois de cada viagem, o momento do regresso a casa.