Não é possível compreender a história da democracia portuguesa sem entender o conflito que opôs socialistas e comunistas em torno da alma do novo regime saído da revolução de 1974. Como explica o historiador Rui Ramos, a “esquerda tem partidos geneticamente em conflito uns com os outros” e as diferenças entre eles nunca desapareceram. E exemplifica: “O Partido Socialista continua a acreditar na social-democracia, algo que para o PCP representa a democracia burguesa”. Para muitos autores, nas últimas quatro décadas esbateram-se as diferenças ideológicas entre o PS e a sua direita, mas entre o PS e a sua esquerda surgiram novas divergências, nomeadamente na integração europeia.

A história das clivagens insanáveis e das pontuais convergências entre comunistas e socialistas envolve ainda o terceiro elemento dos radicais, cujos partidos fragmentados vieram a dar origem ao Bloco de Esquerda, criado em 1999. Muitas vezes, no passado, cada uma destas três esquerdas escolheu as outras duas como inimigas principais. No essencial, a crispação mantém-se e a desconfiança nunca cicatrizou, o que não excluiu pontuais aproximações tácticas, sempre efémeras.

Os conturbados anos 70

Quando, em outubro de 1974, o Partido Comunista realizou o primeiro congresso em liberdade (o sétimo congresso), o secretário-geral Álvaro Cunhal defendeu a estratégia de convergência da esquerda. A tese era de que os comunistas não podiam deixar-se isolar, sendo necessário tentar coligações não apenas com o seu aliado MDP, que os comunistas controlavam, mas também com o PS de Mário Soares. O exemplo chileno estava na cabeça de todos e, apesar das resistências, Cunhal impôs a eliminação da ideia de “ditadura do proletariado”. Do ponto de vista dos comunistas, a cautela justificava-se: a revolução portuguesa era frágil e dependia dos militares, o contexto de Guerra Fria recomendava calma e havia crise nos países capitalistas. As consequências da descolonização eram, no mínimo, imprevisíveis.

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Nos 40 anos seguintes, houve outros momentos em que os comunistas defenderam a convergência da esquerda, mas este primeiro episódio não durou três meses. O grande conflito entre socialistas, comunistas e radicais, envolvendo as respectivas facções militares, rebentaria em 1975, quando se enfrentaram modelos incompatíveis de sociedade. Triunfou a democracia parlamentar, mas chegou a parecer inevitável a vitória do modelo soviético ou da revolução popular.

O 25 de abril de 1974 deu origem a uma vasta convulsão social onde se confrontaram fações militares e partidos políticos com visões opostas. Houve grande número de ocupações de casas, agitação nas escolas, campanhas de dinamização cultural e conflitos dentro das empresas, onde as comissões de trabalhadores impunham saneamentos e autogestão. Em janeiro de 75, o PCP atingira a hegemonia nos sindicatos e conseguiu, com apoio militar, aprovar a lei da unicidade sindical, que consumou a ruptura com os socialistas.

O objetivo a prazo era fazer um vasto conjunto de nacionalizações, o que viria a suceder após o golpe de 11 de março, no qual foi definitivamente derrotada a facção militar mais à direita, liderada pelo ex-presidente Spínola. Este momento representou uma viragem na revolução, criando as condições para a sua radicalização, naquilo que viria a ser conhecido por “Verão Quente”.

Testemunhos citados pelo jornalista Joaquim Vieira apontam para uma mudança da estratégia de Cunhal, que tentou apressar a tomada de poder e domesticar o PS. As nacionalizações incluíram a banca, os sectores básicos da economia, os transportes. A reforma agrária, que abrangeu a metade sul do país, foi acelerada. Surgiram 500 unidades colectivas de produção e foram ocupadas mais de 3600 herdades, com superfície superior a um milhão de hectares.

Em abril de 1975, realizaram-se as primeiras eleições livres, para eleger a Assembleia Constituinte. O PCP teve uma estrondosa derrota, pois não passou de 12,5% dos votos, a que se somavam pouco mais de 4% do seu aliado MDP. O Partido Socialista foi o grande vencedor, com 38%, e o PPD conseguiu 26,4%. Apesar da vitória, os “partidos burgueses” nunca conseguiram participação proporcional nos governos provisórios dirigidos por Vasco Gonçalves, militar próximo do Partido Comunista. A desvalorização do voto popular era justificada com a natureza dessa assembleia, que devia redigir uma Constituição, não governar.

A 1 de maio, acusados de serem “divisionistas”, os dirigentes socialistas foram afastados da tribuna de honra das comemorações do Dia dos Trabalhadores, mas a situação piorou quando os tipógrafos do jornal República, afeto ao PS, afastaram o diretor, Raul Rego, e silenciaram a redação. Todos os jornais ficavam assim nas mãos dos comunistas, que também controlavam as televisões, e o PS reagiu organizando a 19 de Julho de 1975 um gigantesco comício na Fonte Luminosa, em Lisboa.

Ali, Soares acusou a cúpula do Partido Comunista de ser “paranóica” e as Forças Armadas de “darem cobertura a estes irresponsáveis”. Dias antes, os socialistas tinham abandonado o IV Governo Provisório. Entretanto, na esfera militar, decorria uma luta paralela, entre oficiais moderados e radicalizados. O primeiro-ministro, general Vasco Gonçalves, pró-comunista, acelerou as ocupações, procurando impor a ideia de democracia direta através de assembleias populares, para contornar a Constituinte.

A discórdia entre socialistas e comunistas ficou bem à mostra num debate televisivo em novembro, onde se enfrentaram Soares e Cunhal, e que durou três horas e 40 minutos. No dia 12 desse mês, trabalhadores da construção civil cercaram a Assembleia Constituinte e sequestraram durante mais de 24 horas os deputados eleitos. A saída destes foi humilhante, exceto para os deputados do PCP, que abandonaram o edifício sob os aplausos da turba e, em alguns casos, erguendo o punho.

A 25 de novembro de 1975, uma tentativa de golpe para derrubar o VI Governo Provisório (chefiado pelo moderado Pinheiro de Azevedo) terminou da pior forma para os radicais. Os militares da ala moderada do Movimento das Forças Armadas (MFA) tomaram conta do país e o PS, mais uma vez, esteve na primeira linha da resistência democrática.

Este episódio marcou o fim da influência do PCP. Segundo explica Rui Ramos, o “PS foi a principal força anti-comunista no Verão de 1975”, já que nesta altura “o PPD tinha problemas graves de liderança” e estava dividido dentro da própria Assembleia Constituinte. Num trabalho muito citado sobre este período, Medeiros Ferreira escreveu que “o triunfo do PCP, ou de certas tendências dentro do MFA, teria dado origem a um regime político de características bem diferentes das instituições de democracia política vigentes na Europa Ocidental. Já a preponderância eleitoral do PS, a partir das eleições para a Assembleia Constituinte, veio determinar o estabelecimento de um regime pluralista”. Segundo este autor, os outros partidos pró-democracia, PPD e CDS, aceitaram entre 1975 e 1976 “um forte protagonismo político do PS”.

A normalização democrática não conciliou as forças da esquerda portuguesa. O PS venceu as primeiras eleições legislativas de abril de 76 e o primeiro governo de minoria visou “retirar o PCP do poder executivo sem contudo fazer cair o PS nas mãos da direita”.

Longe do Governo

O facto é que os comunistas não regressaram ao poder. Nas presidenciais, o PCP privilegiou geralmente candidaturas próprias, mas facilitou a eleição de candidatos socialistas à segunda volta. As presidenciais de 1986 foram diferentes, pois o PCP apoiou um candidato socialista logo na primeira volta, Salgado Zenha, que enfrentava outro socialista, Mário Soares, num período em que o PS esteve profundamente dividido. Soares venceu Zenha por pouco, em parte devido à emoção que causou uma agressão sofrida na Marinha Grande, então um bastião comunista. Na segunda volta, entre Soares e Freitas do Amaral, Cunhal optou pragmaticamente pelo apoio ao líder do PS, mas pedindo aos militantes comunistas que marcassem a cruz sem olhar para o retrato. Nas presidenciais de 1996, Jorge Sampaio venceria Cavaco Silva com apoio expresso do PS e do PCP.

Pelo caminho, a democracia portuguesa tentou várias combinações de governação, Soares aliou-se ao CDS no segundo governo constitucional, houve também uma coligação de direita que conseguiu maioria absoluta e até um governo de bloco central, mas o PCP só entrou em alianças pontuais a nível autárquico, embora sempre insistisse na ideia de convergência das forças de esquerda.

Embora o PCP não tenha dominado a redacção do texto da Lei Fundamental, os comunistas sempre se opuseram a revisões da Constituição de 1976, combatendo ferozmente os entendimentos de socialistas e social-democratas. A revisão de 1982 foi emblemática. Os dois maiores partidos entenderam-se sobre a redução dos poderes presidenciais e, na prática, PCP e UDP resistiram à imposição da via parlamentarista.

O Presidente da altura, Ramalho Eanes, tinha um conflito com Mário Soares e acabaria por patrocinar um novo partido, o PRD, cujo eventual sucesso teria representado uma hipotética quarta esquerda, relativamente incompatível com as restantes.

Os que defendiam o sistema presidencial tiveram um excelente resultado de 18% nas eleições de outubro de 1985, na prática, cortando o PS quase ao meio. Cavaco Silva foi o vencedor dessa votação, mas o seu governo minoritário estava por um fio. Dois anos antes, em 1983, o país tinha pedido ajuda externa ao FMI e o ajustamento causou uma profunda crise social, com forte contestação laboral. O sistema partidário sofreria um novo choque nas eleições de 1987, na sequência da moção de censura promovida pelo PRD, mas que levou todas as esquerdas a uma rara convergência. O resultado foi desastroso para todos estes partidos: os renovadores quase desapareceram, os socialistas sofreram uma pesada derrota e Cavaco obteve a sua primeira maioria absoluta.

A influência da queda do muro

Os anos seguintes foram de melhoria das condições de vida dos portugueses e, para os comunistas, um período negro de colapso dos regimes na Europa de Leste. Tornou-se difícil justificar o evidente fracasso do sistema comunista e, insatisfeitos com a rigidez ideológica do PCP, muitos militantes abandonaram as fileiras, juntando-se aos socialistas ou aos partidos radicais. Era impossível explicar a tirania romena, a pobreza soviética ou os violentos nacionalismos jugoslavos. O partido não alterou a sua prática, mas abandonou grande parte da retórica dos anos revolucionários. Virando-se para dentro, o PCP resistiu nos bastiões autárquicos, onde nunca hesitou em fazer alianças, nomeadamente com os socialistas. A nível nacional, era difícil fazer coligações com o PS, pois havia o risco de o partido se tornar irrelevante, como acontecera às formações comunistas da Europa Ocidental.

O aparecimento do Bloco de Esquerda não alterou de forma fundamental a relação de forças, mas reduziu ainda mais a importância do PCP. A convergência dos partidos radicais produziu mais dissidentes comunistas. A partir de 1999, PCP e BE disputaram os eleitores à esquerda do PS, mas esse eleitorado estava em profunda transformação: o declínio da classe operária e do campesinato, portanto dos tradicionais eleitores comunistas, parece apontar para a progressiva decadência do PCP, já que o Bloco é mais popular entre os jovens universitários e o eleitorado urbano.

Ao longo dos últimos anos, os socialistas também evoluíram na direcção da social-democracia moderada, com menos referências à Primeira República e à construção de uma sociedade socialista. O PS adoptou até muitas ideias do liberalismo económico.

A Europa é agora o motivo da grande clivagem entre estas esquerdas. Os socialistas são favoráveis ao Tratado Orçamental europeu que impõe limite de 0,5% no défice estrutural dos países da zona euro. Radicais e comunistas recusam tais exigências, como recusam as políticas de austeridade associadas ao resgate financeiro pedido pelos socialistas em 2011.

No Parlamento Europeu, os dois partidos da coligação de centro-direita integram o grupo do Partido Popular Europeu, que costuma fazer alianças com os liberais e com o Grupo dos Socialistas e Democratas, onde se integra o PS. Os eurodeputados eleitos pelo PCP e pelo Bloco estão no grupo da Esquerda Unida, fortemente eurocético e muito crítico das actuais políticas comunitárias.