Houve um tempo em que conhecíamos todos os nossos vizinhos, sabíamos-lhes os nomes, o quotidiano, os filhos, testemunhávamos-lhes as grandezas e as misérias, entrávamos-lhes nas casas, fazíamos de tal forma parte das vidas uns dos outros que não havia personagens secundárias. Nesse tempo — da nossa infância — todas as vidas tinham a dignidade e o mistério de um épico. É esse tempo, para sempre perdido, que reencontramos no bairro Amélia, um subúrbio onde cabemos todos, criado por Bruno Vieira do Amaral a partir seu próprio bairro no Vale da Amoreira, Barreiro.
Ontem, ao receber o prémio Saramago, Bruno, disse de cor o nome de todos os seus vizinhos do Bairro de Fomento à Habitação onde viveu até aos 25 anos. E foi a eles que dedicou o prémio. Isto parecerá uma excentricidade a quem nasceu numa cidade do século XXI, com os seus anonimatos e a suas existências auto-suficientes com carro e casa própria, no entanto isto mostra aquilo que distingue o livro de Bruno Vieira Amaral dos outros que venceram este prémio: a sua dimensão política, pois não se limita a contar uma boa história ele obriga-nos a pensar criticamente Portugal.
As Primeiras Coisas (Quetzal) está longe do estafado realismo mágico (do qual o próprio Saramago foi um dos precursores em Portugal) de Hugo Mãe ou Andrea del Fuego, do sentimentalismo de Peixoto, ou das máquinas-humanas de M. Tavares. Com Vieira Amaral entramos numa escrita de rutura, quer pela estrutura do livro (abolindo categorias de género), quer pela forma como olha para a comunidade humana. Afinal se há assunto recorrente na literatura é o Povo. E nós temos ainda na memória a forma penosa e condescendente como os neo-realistas retrataram esse Povo.
Ora, neste livro, o Povo vem de um lugar pouco explorado na literatura portuguesa: os bairros sociais, as cidades suburbanas que gravitam em torno de Lisboa. Esses imensos lugares de “cimêncio” (ou seja cimento e silêncio como lhes chamaram Diogo Lopes e Nuno Cera num pequeno e prodigioso livro homónimo sobre arquitetura dos subúrbios, publicado em 2002). Lugares onde deambulam figuras que se equilibram entre a hiper-realidade e a total fantasmagoria. São um “grandioso exército de derrotados” muito mais próximos da ternura, da asfixia e da impossibilidade de redenção criadas por um metafísico como Raul Brandão, do que por qualquer neo-realista.
Era como estar de regresso à infância, quando fazíamos metralhadoras com os restos dos estores, disparávamos bagas pelos canudos e imaginávamos histórias fantásticas no nosso quotidiano miserável, como a da mulher que guardava cães ferozes dentro de uma arca e que, em certas noites, os soltava para semear a morte e o terror no bairro…” (As Primeiras Coisas, pág. 45)
A profunda humanidade deste retrato do Portugal dos anos 80 faz-se de pequenos detalhes profundamente simbólicos, das músicas em cassete que se ouviam nas festas de garagem, nos gingles publicitários que ainda hoje sabemos cantar, da voz omnipresente de Ramalho Eanes, dos autocolantes dos partidos políticos colados nos carros, do cheiro do desodorizante 8×4. E não, isto não são fait-divers, são o espírito de um tempo em que tudo era total porque tudo estava a ser vivido pela primeira vez. Por isso entrar no bairro Amélia é tão obrigatório como conhecer o nome e a história dos nossos antepassados. É obrigatório saber que é daqui que viemos e, de certa forma, é daqui que nunca saímos.
Como escreveu António Mega Ferreira, um dos elementos do júri:
“Sem pressa de chegar nem cedência à prolixidade, o autor desenha, em As Primeiras Coisas, o mapa consistente de um subúrbio melancólico, tão recente quanto o regresso dos seus construtores, tão palpável quanto as existências dos que o habitam. Fá-lo com justa medida, consistente e sustentada, num exercício literário que tem tanto de inovador nas ideias quanto de rigoroso e económico na forma e na expressão”.
As Pequenas Memórias
Bruno Vieira Amaral nasceu em 1978, tem raízes em Angola e no Alentejo profundo, nasceu e cresceu no Barreiro e viveu até aos 25 anos num bairro social. Cresceu numa família de Testemunhas de Jeová. Aos domingos vestia a melhor roupa, calçava os melhores sapatos e ia ao culto. Teve múltiplos trabalhos em cafés, bombas de gasolina, um percurso escolar errático, mas sempre acompanhado dos livros da biblioteca que um dia abriu lá no bairro e “onde descobriu a literatura” e com ela uma outra mundividência. Formou-se em História Moderna e Contemporânea no ISCTE, é blogger, crítico literário e tradutor. Trabalha agora como assessor de imprensa no Grupo Bertrand/Círculo, é o editor-adjunto da revista Ler. Mas continua a viver no Barreiro e é nesse pendular diário para Lisboa, feito em transportes públicos, que aproveita para escrever.
Quem o lê no blogue Circo de Lama, nos artigos na revista Ler ou tão simplesmente no Facebook conhece-lhe o humor ácido, a implacabilidade com os moralmente fracos, a conceção do mundo agónica, a intransigência com políticos e jogadores e treinadores de futebol. Mas, sobretudo, o enorme sentido de liberdade e um dever para com a memória. Está ideologicamente mais próximo da direita que da esquerda mas, conta, já votou em “Fernando Nobre, aquele da galinha”. E, como José Saramago, “não acredita numa literatura que não seja autónoma de ideologias políticas ou outras”. Por isso, também rejeita a ideia de viver da escrita, de deixar de trabalhar fora de casa para se dedicar aos livros. Como explica ao Observador, “sabe bem que isso a longo prazo obriga a fazer cedências, a aceitar escrita por encomenda, a ter prazos restritos para escrever… o que acaba por se refletir na qualidade do que se escreve”.
Bruno reclama ainda outra herança de Saramago: o livro As Pequenas Memórias que, juntamente com A Vida como ela é, de Nelson Rodrigues, e O que Diz Molero, de Dinis Machado, foram a grande inspiração para este livro.
Outra figura determinante neste livro é José Rentes de Carvalho, que leu, deu sugestões, fez críticas e não gostou nada da opção de contar parte da história em notas de rodapé, uma das opções estilísticas de Vieira Amaral e que se manteve independentemente da opinião de Rentes, que no seu blogue O Tempo Contado deixa uma nota sobre este prémio.
Vivemos no tempo dos prémios que tornam os escritores milionários instantaneamente (não é o caso dos 25 mil euros do Prémio Saramago) sem que para isso tenham que ser grandes escritores. E basta a passagem de poucos meses e o esgotar dos fogos de artificio mediáticos para que cada um tenha o esquecimento que merece. É verdade que o Saramago é o prémio que mais ajuda a alavancar a carreira dos escritores sobretudo a nível internacional, mas a eternidade literária é para poucos.
Face à onda de exposição mediática que aí vem, de viagens, de festivais, Bruno Vieira Amaral diz estar “disponível mas não deslumbrado”. Ter mais gente a ler os seus livros “será bom” mas “também vai ter muito mais gente a criticar”. Reconhece que a sua principal exigência tem que ser “consigo mesmo” e “com a escrita que quer fazer”.
Para além do blogue Circo da Lama publicou, em 2013, o ensaio Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa e em 2015 Aleluia!, sobre as minorias religiosas em Portugal. Atualmente está a trabalhar num romance que parte do assassinato de um primo, uma investigação e escrita que já dura há vários anos e ainda não tem fim à vista . Porque, como escreveu n’As Primeiras Coisas, “na memória dos bairros, certos homens perduram”.