Absurdas ou geniais? No cancioneiro da pop encontram-se algumas das rimas mais estranhas que guardamos na cabeça. Sim, já as cantámos muitas vezes. Rimas daquelas que não rimam, mas quase. Rimas que fariam os especialistas em fonética levar as mãos à cabeça num gesto de desespero. Mas isto é gente que arrisca, que leva a língua ao limite, gente que rima perigosamente. Vamos ver alguns exemplos, apoiando-nos nos vídeos, e espreite também a fotogaleria.

1. Menino do Rio (Caetano Veloso)

Ainda a música vai no início, logo depois do frio e do arrepio (Polícia da rima: nada a declarar), ao minuto 0:17, ouvem-se estes dois versos: “Coração de eterno flirt / adoro ver-te”.

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Por momentos, ainda ficamos na dúvida se ele dirá “ver-te” ou “verde”. Mas a segunda hipótese ainda fazia menos sentido. Fica, portanto, excluída. Se assim a semelhança fonética já é um bocadinho forçada, rimar flirt com verde conseguia ser ainda mais rebuscado.

O segredo para esta rima funcionar reside no modo como Caetano pronuncia a palavra flirt: “flêrtchi”. Basta este twist para o som já ficar bem mais próximo de “vertchi”. (É mais ou menos como pôr beijo a rimar com Te(i)jo.) E aí? Chama-se a isto liberdade poética. Arte na qual, honra lhe seja feita, Caetano é especialista. Senão atente-se na próxima canção, bem emblemática dessa sua imaginação rimadora.

2. Tigresa (Caetano Veloso)

Ao minuto 4:38 surge esta rima: “Ela me conta que era atriz e trabalhou no ‘Hair’ / com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher”.

É ou não é imaginativo? Esta não encontram num dicionário de rimas, por muito que procurem. Independentemente de ser um belíssimo verso (que é). Salta do inglês para o português sem paraquedas, mas a mudança é subtil: eis o verso livre em todo o seu esplendor, a desafiar os cânones camonianos em grande estilo.

3. You Have Killed Me (Morrissey)

Ao minuto 1:02, Morrissey diz as seguintes palavras: “Piazza Cavour / what’s my life for?” Assim mesmo, cheio de classe. Primeiro verso em italiano, segundo em inglês. Muda de língua como quem não quer a coisa, e num passe de mágica, qual Copperfield da linguística, bem diante dos nossos ouvidos põe “cavour” a rimar com “for” sem ninguém perceber muito bem como. Não é para todos.

4. Efectivamente (GNR)

Muita atenção ao minuto 1:16: “Adoro esses ratos de esgoto / que disfarçam ao dealer / como se fossem mafiosos convictos / habituados a controlar”. Só Rui Reininho se lembraria de uma letra assim. E além de escrever estes versos inusitados, ainda consegue cantá-los de forma a fazer “dealer” rimar com “controlar”.

Repare-se que, ao colocar a tónica na sílaba final, abre espaço para a interpretação e multiplicidade semântica, prevendo uma segunda possibilidade de sentido que é “dealar”: a ação do dito agente, a prática dessa mesma atividade. Dealer, o nome. E dealar, o verbo. Isto é um dom.

E o trabalho que esta letra nos deu a decifrá-la quando éramos mais novos? Mas, aparentemente, não fomos os únicos com esse problema. Uma pesquisa na Internet pela letra desta música devolveu-nos uma versão um pouco diferente, com “padrastos” em vez de “pederastas” e no lugar de dealer lê-se… pilar.

5. Santa Maria da Feira (Devendra Banhart)

Atentemos nestes versos, ao minuto 0:57: “Comendo pêra / em Santa Maria da Feira”. Assim é a letra. Mas como é que se faz pêra rimar com feira? Essa é fácil, pelo menos para Devendra Banhart. Diz-se ‘peira’ e está resolvido.

Eis a forma hábil como Devendra contorna a questão: “Comiendo peira / em Santa Maria de la Feira”. De uma coisa não há dúvidas: o portunhol dele é impecável. E do mais criativo que existe.

6. Lisboa que Amanhece (Sérgio Godinho)

Aqui não está em causa a qualidade nem a beleza desta letra. Nem desta nem de tantas outras de Sérgio Godinho, que nisso ele é exímio (vénia). Nem a qualidade musical. Nem a técnica. A questão que aqui esmiuçamos, sublinhe-se, é somente a rima. E apenas nesta situação específica, ao minuto 1:56: “E o Necas que julgou que era cantora / que as dádivas da noite são eternas / Mal chega a madrugada tem que rapar as pernas / para que o dia não traia / Dietriches que não foram nem Marlenes.” Então vejamos as rimas: eternas, pernas e… Marlenes. I rest my case.

7. Flagra (Rita Lee)

Cá está! Ao minuto 0:28, o apogeu do refrão surrealista: “Se a Debora Kerr que o Gregory Peck / não vou bancar o santinho / Minha garota é Mae West / Eu sou o Sheik Valentino”.

Tem 5 estrelas a cultura cinéfila, mas… Procedendo a uma análise mais rigorosa, nesta passagem Rita Lee consegue um feito ímpar, entre os exemplos aqui trazidos até agora: parece que rima nos dois versos mas, quando vamos ver bem, não rima em nenhum. (Poesia concreta, prosa caótica, como canta Caetano.)

O truque, mais uma vez, está na dicção, que arredonda os finais de frase e até nos faz crer que santinho rima com Valentino. A pronúncia, essa arte do ilusionismo.

8. I Don’t Want to Get Over You (Magnetic Fields)

Ao minuto 1:32, Stephin Merrit canta: “Or I could make a career of being blue / I could dress in black and read Camus”. Caro Stephin Merrit, as suas letras estão talvez no top 3 das melhores do mundo. Tem canções absolutamente fora de série. Agora, convenhamos que rimar “blue” com “Camu(s)” já é esticar um bocadinho a corda, mesmo para um anglófilo. Seria mais ou menos como, em português, rimar “eu sou” com “Fernando Pessô” ou “a minha avó” com “Eça de Queiró”. 

9. Puta (Ena Pá 2000)

Os Ena Pá 2000 são um caso à parte: digamos que andam ali entre a produção de neologismos e a loucura total. Por isso, vão sempre mais longe. E depois vão mais longe do que o mais longe que já tinham ido. Além de fazerem questão de não ser politicamente corretos, também são linguisticamente incorretos. De Manuel João Vieira não se esperaria, aliás, outra coisa senão subversão (a bem da nação). A ideia é mais ou menos esta: se não rima passa a rimar.

Logo ao minuto 0:17 ouve-se “o meu coração palputa” seguido, pouco depois, de “pelas pedras da calçuta” (minuto 0:33) ou ainda, ao minuto, 1:26, “a mais velha do planuta”, “tão linda e misteriuta” (minuto 2:35). E por aí fora, numa interessante proliferação de vocábulos terminados em “uta” que, só por acaso, também não se encontram listados em nenhum dicionário. Em suma: o exemplo perfeito da inovação linguística ao serviço da rima.