Estava em casa há horas, a bebericar. Um copo aqui, outro ali, líquido a entrar no corpo e a contagem da bebida a perder-se. A noite trouxe a madrugada e isso lembrou-o de que talvez fosse hora de trocar um vício por outro. Buscou as chaves, saiu de casa, sentou-se no jipe, agarrou-se ao volante e partiu rumo ao casino mais próximo. Era um desastre à espera de acontecer em Baltimore, nos EUA. Fez-se à estrada e, pelo caminho, carregou no pedal mais do que devia e embalou ao dobro da velocidade permitida numa certa rua. Um polícia viu-o a acelerar e a conduzir “erraticamente”, mandou-o parar. Daí até ao sopro no balão foi um ápice e em segundos sabia que aquele homem tinha no sangue quase o dobro de gramas de álcool permitidas por lei. Estava Driving Under the Influence, um DUI, como dizem os americanos.
Era a terceira vez na mesma década que os sarilhos rimavam com Michael Phelps. Já agarrara as mãos ao volante quando estava embriagado, antes de uma fotografia o apanhar a fumar um bongo, cachimbo de água utilizado para inalar marijuana. O homem que mais sentido dera à expressão “como um peixe dentro de água”, o maior colecionador de medalhas olímpicas — 22, amealhadas em quatro edições dos Jogos (2000, 2004, 2008 e 2012) –, dominava nas piscinas, mas não se conseguia manter à deriva em terra. Os jornais eram como tubarões, rápidos a detetarem o sangue no mar e a abrirem as mandíbulas dos títulos, notícias e manchetes, a toda a hora, sobre o novo revés polémico na vida do melhor nadador de sempre. Aconteceu em setembro de 2014, mais ou menos uma década de Phelps tocar pela primeira vez no ouro olímpico, em Atenas.
Tinha 29 anos e não saiu de casa nos quatro dias seguintes. Fechou-se, um prisioneiro de si próprio, enclausurado entre quatro paredes. “Dava para ver que estava a sentir o peso das suas ações. Ele sabe que há miúdos que o têm como ídolo. Ele tem uma fundação. Sabia que tinha desiludido várias pessoas e não fazia ideia do que ia acontecer a seguir”, recordou Shea, uma de duas irmãs de Michael, quando a Sports Illustrated foi falar com familiares e amigos próximos do homem a quem chamam “O Peixe Voador” pelos feitos que consegue a nadar. “Vivia com o medo de receber uma chamada a dizer-me que algo deste género tinha acontecido. Sinceramente, pensei, tendo em conta a maneira como ele estava, que se iria matar. Não acabar com a própria vida, mas algo como conduzir com álcool, ou pior”, confessou Bob Bowman, o treinador de sempre de Phelps. Todos temiam o pior, ninguém via Michael com estômago suficiente para digerir o que causara, para superar as bebedeiras mais frequentes que ocasionais.
Nem ele. “Estava num sítio mesmo muito escuro. Não queria viver mais”, admitiu, há tempos, meses e meses depois de quem dele é mais próximo o convencer a passar uma temporada numa clínica de reabilitação. Era tempo de mudar, de corrigir algo com que há anos o norte-americano se maltratava, mesmo que, sabe-se lá como, continuasse a nadar mais rápido que os outros e a receber medalhas por isso. “Foi dar uns abraços, uns beijinhos, entregar o telemóvel e ir para o meu quarto. Provavelmente foi a altura da minha vida em que senti mais medo”, revelou Michael Phelps à mesma revista, que esta semana faz capa com esta decisão, a que deu ao nadador uma mentalidade que nunca antes tivera. O título diz tudo: “Depois da reabilitação, o melhor de Michael Phelps pode estar para vir“.
Fora o que as palavras descrevem, o norte-americano está diferente. Deixou o cabelo crescer tanto como a barba que agora lhe tapa a cara. Já não mantém a aparência estereotipada de um nadador, que manda não ter um pelos no corpo para haver o mínimo de fricção e atrito em cada braçada que dá dentro de água. Nisso também há diferenças: hoje em dia, Michael Phelps treina em piscinas ao ar livre, algo que antes muito raramente acontecia. “Acabas de nadar, olhas para cima, e está um céu azul e sem nuvens. Isso para mim é fantástico”, contou, na longa entrevista que concedeu à publicação desportiva. Os 45 dias passados na clínica de reabilitação parecem ter-lhe feito maravilhas.
Não faltou a um treino desde que de lá saiu, há quase um ano, quando antes passava uma ou outra sessão, sempre que a ressaca de uma noite na companhia do álcool era demasiado para o corpo (e a cabeça) ultrapassarem. Perdeu peso, está mais musculado, mais fit. Já em 2015, e como estava impossibilitado de participar nos Mundiais de natação — a federação de natação dos EUA suspendeu-o devido ao caso da embriaguez –, nadou antes nos campeonatos nacionais norte-americanos e, guess what? Em três provas, registou melhores tempos que os conseguidos pelos vencedores no Campeonato do Mundo. Foi a primeira prova de que teve razão em dizer o que disse ao treinador , mal terminou o exílio na reabilitação: “Acho que nunca cheguei a dar tudo o que tinha”.
Michael Phelps parece ter encontrado a motivação que outrora teve e que entretanto perdera, porque ela o espremia ao máximo para o corpo estar a postos quando fosse preciso conquistar medalhas. Foi assim que passou anos e anos a preparar as oito medalhas de ouro com que saiu de Pequim, nos Jogos Olímpicos de 2008, e como, depois, resolveu tirar o pé do acelerador como não tirou no dia que mudou de vez a sua vida. “Depois de 2008, mentalmente, estava acabado. Mas sabia que não podia parar de nadar, por isso forcei-me a fazer algo que não queria fazer. Durante quatro anos faltava a pelo menos um treino por semana. Porquê? Não me apetecia ir. Que se lixe. Vou ficar a dormir, falto à sexta-feira e assim tenho um fim de semana prolongado”, retratou, ao lembrar os tempos que não podiam contrastar mais com o que hoje é a vida de Phelps.
E o melhor de tudo isto — além da entrevista e reportagem da Sports Illustrated — é que Michael Phelps já disse que vai estar no Rio de Janeiro. E cumpriu. Michael Phelps chegou ao Brasil e já conquistou uma medalha de ouro, a 19. ª nos 400 x 100 metros livres. Quebrou assim mais um recorde: o mais velho de sempre a conquistar uma medalha de ouro por dar umas braçadas tinha 30 anos. Phelps tem 31. E ao que tudo indica isto não vai ficar por aqui.
Texto originalmente publicado em novembro de 2015, atualizado com a prestação de Michael Phelps nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.