O livro Arrume a Sua Casa, Arrume a Sua Vida pode passar despercebido a muita gente, mas desde 2011 que é um dos livros mais vendidos no mundo e, este ano, tem sido um dos mais vendidos em Portugal. E no entanto não teve recensões críticas, entrevistas com a sua bela autora — a japonesa Marie Kondo, eleita recentemente pela Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo –, outdoors publicitários, nada. Basta o boca a boca e todos passam a querer experimentar o radical método Konmari, que basicamente ensina… a deitar coisas fora.
Não, não é mandar para instituições de caridade, para a garagem da casa dos pais, não é sequer dar a amigos e familiares. Marie Kondo não teme pelos nossos remorsos, pelos nossos sentimentos de culpa judaico-cristãos, pelo dinheiro que gastámos, nem sequer pelas memórias que as coisas guardam. Vai tudo para o lixo e acabou.
Talvez esteja agora a pensar que isto é demasiado radical, pouco altruísta, que nunca conseguiria desprender-se das suas coisas assim, que um dia pode vir a precisar delas (afinal, o cinema americano está sempre a anunciar um apocalipse, uma guerra mundial, um cataclismo qualquer. “E se acontecer?, pensamos aflitos). Marie Kondo é linda, magra e está-se nas tintas para o fim do mundo que nos anunciam de quando em quando, ou mesmo para aquela felicidade que parecem conter todos os produtos que desejamos comprar (e que efetivamente compramos). Tal como os remotos ascetas, os estóicos, ou simplesmente os minimalistas, Marie vem dizer-no algo muito simples: uma das causas da nossa frustração (e da nossa casa sempre desarrumada) não é aquilo que nos falta. É aquilo que temos a mais.
Por isso, não se engane: a melhor forma de ajudar os outros não é dar-lhes o que não querem, pois isso não é partilha, é delegação de responsabilidades (e quem nunca achou que era boa ideia oferecer à mãe, às irmãs ou às amigas todas aquelas roupas que nunca usou, aquelas peças de cozinha que ganhou no Natal ou aqueles livros de que não gosta?). A melhor forma de ajudar os outros é mesmo comprar/acumular menos tralha.
E já agora, atenção: este não é um livro de auto-ajuda. É um livro para pessoas inteligentes, escrito sem condescendência nem facilitismos.
Seja corajoso e deite fora tudo o que não o faz feliz
Este mote pode parecer ingénuo, mas ele é a base do método Konmari de Marie Kondo. Não é Feng Shui, não é nada com cheiro a New Age, não há promessas de felicidade eterna envolvidas. Muito pelo contrário. Arrumar a casa deitando fora o excesso é um processo de aprendizagem, árduo, difícil e não é de todo obrigatório. Há pessoas com aquele “espírito de colecionador” de que falava o filósofo Walter Benjamin, cuja verdadeira felicidade reside nesse acumular de objetos, nessas alegrias quase secretas de admirar cada coisa que se acrescenta à coleção. Não confundir, porém, o espírito de colecionador com o espírito consumista, com a insatisfação permanente que leva ao constante desejo de comprar que, explica Kondo, não é muito diferente do desejo de comer e beber em demasia. Daí que tantas pessoas com excesso de peso sejam também pessoas que compram objetos compulsivamente e se rodeiam de vários excessos. Não é sem um pontinha de perversidade que a autora do livro nos vai dizendo várias vezes: qual é o problema? “É medo de enfrentar o passado ou medo de perder o futuro?”
O método passa por olhar e tocar cada objeto que possui (mas cada é mesmo cada, seja um par de ténis caro, um botão perdido ou uma caneta promocional) e perguntar-se se ele o faz feliz. Não importa o que é, o preço que custou, quem lhe ofereceu, que memória traz. Esse objecto fá-lo feliz hoje? Se pensa que não ou se tem dúvidas, coloque-o no saco do lixo.
Aparentemente este simples exercício vai ajudá-lo a livrar-se de uma enormidade de coisas. A autora conta que há quem viva num exíguo apartamento de Tóquio e junte entre 35 e 75 sacos do lixo de 45 litros para deitar fora. Nas casas de campo o volume costuma ser maior. Depois disto, e só depois disto, é que pode passar à fase seguinte: arrumar.
Há portanto que “assumir escolhas e tomar decisões”, diz Marie, e isso é difícil para a maior parte das pessoas.
Deitar fora sem culpa mas com método
Obcecada com arrumações desde a infância, Maria está familiarizada com todos os nossos auto-enganos e truques. E vai-nos driblando. Eis alguns conselhos e armadilhas a evitar.
- Arrumar uma assoalhada de cada vez. Não. A arrumação é para ser feita de uma penada. Num só dia ou, no máximo, num fim de semana.
- Arrume sozinho. Isto é um processo interior, os amigos não ajudam, só distraem e ainda aceitam ficar com algum do seu lixo.
- Arrume em silêncio. A ideia é que perceba o que é que cada objecto significa para si. Nada de música.
- Se vive com a família não o faça quando os outros estiverem em casa.
- Junte todos os objetos por categoria (roupas de cima, roupas de baixo, casacos, meias, malas, acessórios, sapatos, roupa de casa, livros, CDs… Deixe para o fim fotografias e papéis de valor sentimental).
- Espalhe todos os objetos de cada categoria no chão e veja-os um por um.
- Não tema guardar coisas absurdas se perceber que elas o fazem feliz.
- Não use como desculpa “um dia vou precisar”. Mesmo em países com um passado recente de pobreza como o nosso, não vai precisar daquele casaco que nunca usou, de livros da escola secundária, de roupas dos seus filhos, de fotografias de paisagens que nem se lembra onde são.
Arrumando o que sobra
Lembre-se que as arrumações só podem começar depois de ter deitado fora tudo o que não o faz feliz. E já agora conte quantos sacos juntou e partilhe com os amigos. espalhe a palavra: viver com menos é preciso.
- Guarde as roupas sempre dobradas e colocadas na vertical. Mas não exagere: é proibido empilhar pois isso fará com que nos esqueçamos do que está por baixo.
- Maximize o seu roupeiro pensando nele como mais uma assoalhada.
- Arrume a roupa em caixas de plástico transparente para ver sempre tudo o que tem.
- Use caixas de sapatos ou caixas de cartão para arrumar tudo o que são frascos, etc.
- Arrume todas estas caixas no roupeiro e armário.
- Pendure em cabides só a roupa que precisa, como casacos, sobretudos, fatos, vestidos ou camisolas muito finas e leves.
- Nunca faça bolas com as meias, pois está a destruir-lhe os elásticos e a fazer da gaveta um caos. Separe-as por categorias (collants, longas, curtas, etc) dobre-as em três e arrume-as na vertical.
- Nos livros e CDs (a não ser que o seu trabalho seja à volta destas áreas), reduza-os ao Olimpo, ou seja, fique apenas com aqueles que considera “o seu Olimpo literário” ou “o seu Olimpo musical”.
- Deite fora todos os papéis exceto os contratos de hipotecas bancárias, as garantias dos eletrodomésticos e as cartas que ainda não leu.
- Se tem família, faça este trabalho apenas com as suas coisas e só depois pode instigar (ou exigir) que os outros também o façam. Kondo explica que até uma criança de três anos aprende depressa a arrumar os seus objetos se for ensinada e, muito importante, se ela própria experimentar fazê-lo sozinha.
Do you Kondo? The Japanese Art of Decluttering #goopsee http://t.co/448Jq6fBl7 pic.twitter.com/tzSBzCaSnL
— goop (@goop) July 9, 2015
Organizar dando a cada objeto um lugar definitivo
Organizar o que fica é a última parte do processo. E não esteja já a pensar em todos os maravilhosos arquivadores e caixas e separadores e dossiers e cabides que vai comprar porque Marie Kondo avisa: organiza-se usando o que se tem.
- As malas que guardou use-as para guardar outras malas mais pequenas. nunca mais de duas ou três.
- As caixas de sapatos, de chocolates, tupperwares, etc., servem para guardar coisas lá dentro, como talheres, frascos de champô e detergentes.
- Não espalhe objetos iguais por locais diferentes. A roupa deve estar toda no mesmo roupeiro, as bijuterias todas na mesma gaveta ou caixa. Se cada coisa tiver um lugar fixo, será mais fácil voltar a colocá-la sempre lá e não a perder ou esquecer.
Ah, e aquela gaveta onde colocamos tudo o que não sabemos para onde vai?
Essa gaveta terá, como tudo o resto na sua vida, que ser enfrentada. Botão a botão, moeda a moeda, caneta, bloco, post it, chaves, pilhas, velas, postais, ou seja… deite tudo fora. Não tenha medo. Vai ganhar sempre novas canetas promocionais, vai poder comprar pilhas quando realmente necessitar delas, vai guardar no coração o amor pelos amigos e familiares que enviaram os postais (que aliás é onde os amigos e familiares devem estar, e não fechados em gavetas a morrer asfixiados entre tanta tralha sem sentido). E dos amigos e amores dos quais já não nos lembramos — para que serve guardar fotos, postais e presentes? Por alguma razão os esquecemos e a vida continuou.
Lembre-se que a sociedade de consumo só funciona porque nos inventa desejos e ausências que verdadeiramente não temos. E nós compramos, compramos, juntamos, acumulamos sem verdadeiramente valorizarmos aquilo que temos, sem nunca nos relacionarmos afetivamente com os objectos que possuímos.
Sabiamente, Kondo desmistifica: não vale a pena termos pena dos objetos que deitamos fora. Se o objetivo deles na nossa vida era ensinar-nos que não precisamos deles, então já cumpriram a sua função e podem agora ir em paz… para o lixo.