Título: Uma vez que tudo se perdeu
Autor: Pedro Mexia
Editora: Tinta-da-China
Número de páginas: 80
Preço: 12€
Na badana da capa, Pedro Mexia assina uma breve nota em que cita Samuel Hynes sobre Thomas Hardy: “O tempo é o meio através do qual o presente se torna passado irrecuperável, e no qual a observação se torna memória; no mundo poético de Hardy, esta transformação é tema essencial… os poemas estão muitas vezes organizados num contraste entre o presente e o passado, entre a observação e a memória, num padrão irónico, a dois tempos, que revela como as expectativas foram derrotadas, as perdas sofridas, a esperança e a felicidade destruídas, simplesmente porque o tempo passa.”
Cito esta nota com alguma demora porque me parece de facto apropriada como entrada para Uma vez que tudo se perdeu. No entanto, seria demasiado fácil notar o tom irónico, melancólico e saudosista de poemas como “A Curva do Mónaco” (p. 18) ou “Quadra” (p. 25), para de seguida descrever todo o conjunto nos termos de Hynes, notando como o último volume de poemas de Pedro Mexia manifesta a apreensão, e uma possível contestação, da inelutável tirania do tempo. Mas quando um poeta dedica espaço dos seus poemas a considerações sobre o tempo, não costuma fazê-lo de modo inocente. Por outras palavras, o choque entre a expectativa que parecia criar a possibilidade do futuro e a apreensão de como o presente nulifica e esvazia as pretensões do passado, não se trata da preocupação central deste livro. Este movimento, que não deixa de ser pertinente para a compreensão de Uma vez que tudo se perdeu, é no entanto secundário em relação a um conflito que adquire dimensões maiores, nomeadamente o embate entre o que Pedro Mexia quis ser enquanto poeta e o que actualmente julga ser enquanto poeta.
Nas várias leituras que fiz deste livro sempre me ocorreu a pergunta: porque será que Pedro Mexia, ao recorrer à obra de James Joyce (p. 46), optou por transformar em poema uma passagem do último conto de Dubliners, “The Dead”, em vez de uma passagem de A Portrait of the Artist as a Young Man, ou Ulysses? Stephen Dedalus sempre foi contagioso, e nunca será de espantar que um artista, ao querer apropriar-se das palavras de Joyce, se aproprie das palavras do artista de Joyce. O porquê de Pedro Mexia ter feito uma escolha diferente deve ser considerado à luz da pertinência que a cena final de “The Dead” tem para o seu livro de poemas. Nesta cena Gabriel Conroy conversa com a sua esposa, Gretta Conroy, que lhe conta a história de Michael Furey, seu primeiro amante, que morreu por amor. Para Gabriel, o protagonista, Furey torna-se um espectro vindo do passado, capaz de revelar a instabilidade do presente e o quanto este ficou aquém das expectativas do passado, o quanto é diferente daquilo que se pensava construir como futuro. Perante a convicção e dedicação extremas que caracterizaram a morte de Furey, Gabriel apercebe-se da sua pequenez, da absoluta derrota em que consiste a sua vida.
A relevância da escolha de Pedro Mexia pode ser vista na forma como o seu poema estabelece uma relação especial entre, por um lado, o poeta e Gabriel Conroy, e, por outro lado, o poeta e Michael Furey. Se considerarmos que Gretta Conroy é, no poema de Mexia, a musa que o poeta questiona sobre os seus amantes anteriores, a dimensão temporal do conflito que é anunciado no título do livro ganha contornos particulares. Pedro Mexia, enquanto poeta, reconhece que o seu amor pela musa é um amor que não pode ser cumprido, é um amor incompleto e falhado, oprimido por um passado que não é capaz de igualar na intensidade, tal como não é capaz de competir com as suas consequências. A melancolia e a saudade que a musa sente pelo antecessor são a prova de que as ambições e projectos que marcaram o passado tornaram-se inconsequentes para o presente vivido. É o choque entre a dimensão opressiva do passado e a não exclusividade da musa, implícita na própria existência do passado, contra a percepção que se tem do momento que se vive, que resulta na descrição negativa que Mexia, algumas páginas adiante, em “Bradomín”, propõe de poesia: “noite escuríssima, comoção inútil” (p. 69). Resulta, também, nas descrições que se seguem do passado como ambição equivocada e frustrada:
“Enganei-me em tudo, guardei
moedas que não circulam
nem valem ainda como colecção,
. . . .
Épica e lírica caíram em desuso, marquês,
dão-te azedume e mofa, que levas à boca, e é da tua
condição que aceites e agradeças.” (p. 69)
A deflação do género maior da antiguidade clássica, e do género maior do romantismo, é em “Bradomín” como Michael Furey em “The Dead”, capaz de destabilizar a percepção do presente de tal forma que apenas a derrota e o fracasso permanecem.
Não me parece, contudo, que Michael Furey deva ser considerado como uma espécie de símbolo para a anterioridade poética de Pedro Mexia, uma espécie de figura composta a partir das figuras tutelares que oprimem a sua consciência enquanto poeta, que o predispõem para a angústia. Que este não seja o caso parece-me ser confirmado pela aparente leveza com que Mexia se apropria de vozes que lhe são cronologicamente anteriores. Enquanto poeta, Pedro Mexia parece relativamente à vontade com a linguagem da anterioridade. A relevância do espectro de Michael Furey para todo o conjunto de poemas de Uma vez que tudo se perdeu deve ser considerada, não como o passado literário que antecedeu Pedro Mexia, mas como o passado poético de Pedro Mexia. Não como os modelos que quis reproduzir, mas como a vontade de os reproduzir, a ambição de um poeta mais novo e em formação.
A musa e o passado
Aquilo que é lamentado no poema “Michael Furey” não é tanto o sucesso titânico de um passado dourado que obscurece o presente, mas sim o fracasso de um passado que não foi capaz de se cumprir. O poema não contrasta, deste modo, o presente com um estado de coisas que lhe é preferível e que no entanto não pode ser vivido, pois na verdade o que faz é equacionar a insatisfação do presente com a incompletude de um passado que permaneceu por realizar. Neste sentido, é interessante que o poema de Mexia descreva do seguinte modo a forma como a musa relembra o passado:
“Apenas um rapaz de Galway
e que em Galway cantava.” (p. 46)
O verbo ‘cantar’ é precisamente aquilo que caracteriza a actividade poética. A conjugação deste verbo no pretérito imperfeito do indicativo não é descuidada, e não tem como único propósito evidenciar que o canto de Michael Furey teve uma certa duração no tempo. O uso do pretérito imperfeito, neste poema, remete para um dos primeiros poemas do livro, “Futuro Anterior” (p. 14), e estabelece uma relação importante entre os dois. “Futuro Anterior” é um curto poema que funciona como uma charada, cujo objectivo consiste em notar a contradição de usar o imperfeito (descrito como “Um facto terminado e garantido / como acreditávamos” – p. 14) para falar de um tempo futuro e hipotético. A relação entre este poema e “Michael Furey” parece-me absolutamente crucial e central para entender a reflexão sobre o passado que caracteriza Uma vez que tudo se perdeu: do mesmo modo como Pedro Mexia é Gabriel Conroy, descobrindo que a sua musa é também a musa de outros (cujo potencial pode ser maior que o dele), Pedro Mexia é também Michael Furey, cujo passado está destinado a ser algo incompleto, um passado hipotético. Assim, enquanto Gabriel, Mexia é o futuro inconsequente de Michael Furey.
O último livro de Pedro Mexia, reflectindo sobre a passagem do tempo, consiste deste modo numa admissão de derrota. Esta admissão é, no entanto, uma afirmação das expectativas frustradas e das ambições equivocadas, uma afirmação a que não falta coragem, mestria e segurança. Uma vez que tudo se perdeu é o resultado de uma honestidade poética invulgar. No final de contas, uma afirmação de fracasso e de derrota pode também ser, em si e por si mesma, simultaneamente uma vitória, uma afirmação repleta de confiança e de generosidade.
Rodrigo Abecasis é doutorando no Programa em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.