Priiiiim! Ouvir este som é quase como ser despertado pelo mesmo toque de sempre, do alarme de sempre, que nos faz ter a reação que se tem sempre, que é tentar calá-lo o mais rápido possível. É esse o som que desperta a atenção do senhor de 35 anos, barba já longa a cercar-lhe a cara e uma aura de mística a rodeá-lo, quando o árbitro sopra no apito, ergue um braço e aponta para a baliza do Benfica. Falta, a bola é forçada a parar, ficar quieta na fronteira da área, esperar ansiosa pelo momento em que um pé lhe bata com o carinho de quem procura um golo. A ânsia deve ser muita, a bola não precisa de ser sábia por aí além para saber que, dos onze jogadores vestidos à Beira-Mar, um tem prioridade para lhe bater.
Era o senhor, e aí é que está o problema, porque o senhor não gosta disto. Mesmo nada. Toda a gente no estádio Mário Duarte, em Aveiro, não tem que saber de bola para também ter noção de que uma falta que ponha a bola a jeito de ser rematada à baliza é para a lenda que está de chuteiras calçadas. Mas isto dá-lhe a volta à cabeça, aos nervos, ao corpo, a tudo. Começa “a tremer com aquelas camisolas vermelhas todas” que tem “à frente”. Mais ainda quando olha para um lado e vê Nené, o que nunca suja os calções brancos, ou repara em Minervino Pietra, o lateral que vai atrás de bolas como um cão que rói um osso. As “caras familiares”, as que conhecia de épocas e jogos passados, abanam-lhe a alma.
Não consegue, não quer, nem tenta fazer o que seja à bola que está parada. Não senhor. Vira-lhe as costas, afasta-se e, enquanto dá passos à distância, decide usar umas palavras para petrificar o miúdo que, por acaso, tem ao lado. “Bate tu, que eu não quero marcar”, diz-lhe. O abismo que separa os 35 anos de quem marcara 619 golos pelo Benfica dos 19 anos de quem ia no segundo ano de sénior deixam António Sousa “naturalmente abismado”. Como ainda “é menino” e “demasiado infantil”, conta-nos hoje, nada diz na altura e limita-se a “acatar a decisão”. Tenta livrar a mente da surpresa de “ouvir aquilo da boca de uma figura e de um monstro daqueles”, esforça-se por focar-se na ideia de marcar um golo, mas a bola que bate com o pé direito não acerta na baliza.
“Não sei o que se passou comigo, mas comecei a tremer com aquelas camisolas vermelhas à minha frente, aquelas caras familiares.”
Passa por cima, como que rematada por quem a rejeita momentos antes. Porque ele, a 15 minutos de o jogo arrancar, insiste em “entrar no balneário do Benfica” e dizer “à malta” que sim, vai jogar, “mas não há problema” porque não seria responsável por marcar golos. O senhor fala verdade, tanto que antes vira-se para Manuel de Oliveira, treinador do Beira-Mar ao qual se junta no intervalo de inverno da North American Soccer League, e diz: “Você não me mande marcar um livre, não me mande marcar um penálti, porque eu vou mandar a bola por cima”. Dito por ele, feito por António Sousa. Muitos anos depois, conta que no resto dos 75 minutos que passa em campo limita-se a “pegar na bola e entregá-la” a alguém.
Isto já é meia verdade ou metade de uma mentira. O senhor não corre tanto como corria, mas a energia que lhe falta nas pernas não quebra o jeito que ainda o acompanha para, sozinho, acertar mais remates na baliza (quatro) que a equipa do Benfica — que marca dois golos com o par de bolas que chuta com pontaria (quem o diz é outro senhor). Quando se ouvem os três “priiiiim!” seguidos e o árbitro acaba com o jogo, o resultado está num 2-2. O senhor que vive como uma pantera suspira, “aliviado” pelo facto de o Benfica “não sair derrotado de Aveiro” e por um dos seus livres não fazer mossa nos encarnados.
Tudo aconteceu a 5 de janeiro de 1977, já lá vão 39 anos.
Agora, a 5 de janeiro de 2016, cumprem-se dois anos desde a morte do senhor que não foi preciso o texto identificar para quem o lê ter percebido como se chama: Eusébio da Silva Ferreira. Quis o tempo que este episódio se cruzasse num dia com o final da lenda viva do Pantera Negra, com quem António Sousa “nunca trocou uma palavra” sobre o que aconteceu na primeira vez que Eusébio jogou contra o Benfica. “Ficou por ali”, disse-nos. A história de Eusébio continuará para sempre.