Toc-toc, batem à porta. Quem é? É a polícia, e um tipo com cara de má gente acompanhado por uma equipa de operários. Você não pagou a hipoteca da sua casa, tem muitos meses de prestações em atraso, o banco executou a dívida e o tribunal confirmou. Dão dois minutos para juntar os pertences de primeira necessidade e desocupar o imóvel, e um dia para tirar os tarecos que serão depositados no quintal e arranjar um camião de mudanças para os levar. Com os vizinhos todos a ver, um dos operários muda a fechadura da porta. Estamos no olho da rua, sozinhos ou com a família. E agora, o que fazer? Para onde ir?

Bem-vindos aos subúrbios da Florida, ao território das vítimas da crise do subprime e da explosão da bolha do imobiliário, que deixou milhões desempregados e sem lar nos EUA. Em “99 Casas”, o realizador americano de extracção iraniana Ramin Bahrani filma as baixas anónimas das miríades de estilhaços daquela gigantesca detonação, presas fáceis de Rick Carver (Michael Shannon), um agente imobiliário que, representando os bancos, despeja as pessoas que não pagaram as prestações das hipotecas ou dos empréstimos e depois adquire os imóveis para os voltar a pôr no mercado. Nunca se sabe como os despejados vão reagir, se a gaguejar e a sair de casa em boa e atarantada ordem, se a fechar-se a sete chaves e a disparar uma carabina pela janela. Mas, no fim, Carver leva sempre a sua avante e acrescenta mais uma casa à sua longa lista.

[Veja o trailer de “99 Casas”]

Se o céu dos gatos é o inferno dos pardais, o paraíso de Rick Carver é o pesadelo do seu semelhante. E as sequências de despejo tal como Bahrani as filma, com o mais imediato e desapiedado realismo de aflição e revolta, mostram que a ficção não fica atrás do documentário ou da televisão em directo, na descrição das consequências da crise tal como são vividas por quem está no fim da cadeia alimentar económico-financeira e apanha com os destroços em cheio, e da maneira como alguns sabem beneficiar dela. Mas, além de ser um retrato do crash imobiliário feito do ponto de vista das vítimas e dos aproveitadores, “99 Casas” é também um enredo de tintas faustianas adaptado aos nossos tempos, onde o dom do conhecimento é substituído por lições intensivas de corrupção e de ganância.

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[Veja a entrevista com Ramin Barhani e Michael Shannon]

Um dos despejados por Carver é Dennis Nash (Andrew Garfield, de “O Fantástico Homem Aranha”, bem melhor aqui a fazer de cidadão comum do que de super-herói), pai solteiro e operário da construção civil desempregado, que tem que recolher a um motel manhoso com a mãe e o filho adolescente. Um acaso, e a necessidade absoluta de ter dinheiro rápido no bolso, levam-no a ir fazer um biscate para o homem que o despejou, depois outro, e outro ainda a seguir, e ao dinheiro seguem-se as chaves de uma casa. Rapidamente, Nash está a trabalhar para o agente imobiliário, ganha a sua confiança e é por sua vez incumbido por este de ir despejar pessoas com a polícia ao lado — incluindo no seu antigo bairro.

[Veja a entrevista com Andrew Garfield]

E mesmo sabendo que é errado, humilhante e indigno, Nash põe mãos à obra. O instinto de sobrevivência e de preservação dos seus tem a voz mais grossa do que a da sua consciência, e a sensação do maço de dinheiro na carteira e a certeza de ter quatro paredes e um tecto onde se abrigar ao fim do dia, são mais fortes do que as cotoveladas dos escrúpulos morais. Mas será que ele vai mesmo vender a alma ao diabo da especulação imobiliária, para o qual uma casa não passa de “uma caixa para meter pessoas”?

Não importa que, a partir de certa altura, adivinhemos qual vai ser o destino final do enredo de “99 Casas”, a viagem vale a pena. Primeiro, porque o realizador conduz a acção sem pontos mortos nem digressões ou conversas de chacha. E depois porque é um prazer vermos o grande Michael Shannon a interpretar Rick Carver como se fosse a sua segunda pele. Ele é uma alma gémea do Gordon Gekko de “Wall Street”, um dos rostos de pedra do capitalismo canibal, com o seu olhar de cobra-capelo, o seu cigarro electrónico a brilhar, o tom de voz controlado, esteja a convencer ou a ameaçar, e a sua absoluta e assumida falta de compaixão social. E tanto mais convincente porque muito real.

[Veja a entrevista com Michael Shannon]

Tal como Shannon o personifica, formidavelmente destestável e imperturbável, Rick Carver é o filho de uma vítima do sistema, ao qual se juntou em vez de repudiar, e trepou por ele acima (“Eu fazia casas com o meu pai, ele teve um acidente de trabalho, o seguro não pagou, ele ficou inválido e viciado em analgésicos, e por isso passei a viver ficando com as casas dos outros”, conta a certa altura), e o filme, além de lhe dar tempo de antena para fazer a sua defesa, permite-lhe ser coerente consigo mesmo. Carver permanece insensível como uma pedra e mau como as cobras mesmo até ao último plano de “99 Casas”. Um rebate de consciência seria fácil e soaria falso. Os tubarões nunca se arrependem.

[Veja uma cena de “99 Casas”]

https://youtu.be/WnNEjYGkdHA

“99 Casas” recebeu prémios em festivais como Deauville ou Veneza, e Michael Shannon está nomeado para um Globo de Ouro. Para a semana, estreia-se em Portugal “A Queda de Wall Street”, de Adam McKay, que fala do mesmo tema, mas visto do lado daqueles poucos que, antes de toda a gente e contra a opinião da esmagadora maioria, perceberam que ia rebentar uma gigantesca e arrasadora crise financeira. Vistos em conjunto, os filmes de Bahrani e McKay fazem uma excelente “sessão dupla” sobre as suas causas e efeitos, os seus responsáveis, as suas vítimas e os seus predadores.