Nos últimos anos, a empresa farmacêutica Bial tem estado a desenvolver uma nova molécula para o tratamento da dor. Desde junho do ano passado, segundo comunicado da empresa, que a molécula estava em ensaios clínicos de fase I – a primeira fase de testes em humanos. A molécula foi identificada com um “inibidor da FAAH”. Mas afinal que tipo de molécula é esta?
Esta molécula pertence a uma família de fármacos – os inibidores de FAAH (hidrólase de amidas de ácidos gordos) – que têm sido testados em humanos, ainda que não haja nenhum medicamento deste tipo no mercado. Uma das empresas que teve uma molécula deste tipo em ensaio de fase 1 foi a Pfizer. Os 77 sujeitos, que tomaram doses simples e múltiplas, toleraram bem a molécula (PF-04457845). A mesma molécula chegou a ser testada em 74 doentes com osteoporose, mas não se mostrou eficaz – foi, no entanto, bem tolerada e não teve os efeitos secundários.
“A medicina da dor é uma área importante de investigação científica e os clínicos têm um número limitado de opções de tratamento para a dor, muitos dos quais estão associados com os próprios efeitos adversos [como ataques cardíacos] ou problemas com adição [como os opiáceos]”, refere num comentário ao caso Munir Pirmohamed, regente da Cátedra de Medicina David Weatherall, da Universidade of Liverpoole vice-presidente da Sociedade Britânica de Famacologia.
“Há necessidade de novos analgésicos”, refere o professor. Essa terá sido, provavelmente, a motivação para o estudo dos inibidores da hidrólase de amidas de ácidos gordos (FAAH, na sigla em inglês) por várias empresas farmacêuticas. As FAAH são enzimas que quebram compostos produzidos pelo organismo e que atuam como neurotransmissores no sistema endocanabinoide – localizado no sistema nervoso central e em outros sistemas do corpo. O objetivo, conforme explica Munir Pirmohamed, é “preservar o efeito analgésico sem ter os efeitos negativos dos canabinoides”.
“[Os componentes ativos da planta da canábis] tem propriedades que permitem aliviar a dor, mas os seus outros psicoativos, incluindo perda de memória, dissociação do ambiente e outros efeitos derivados do uso crónico, limitam a sua utilização”, diz Stephen Alexander, membro da Sociedade Britânica de Farmacologia. “O uso dos inibidores de FAAH nos mesmos modelos [animais] não está associado aos mesmos sintomas [provocados pela canábis e derivados].” Usar os inibidores de FAAH tem também vantagens sobre outros analgésicos, como ibuprofeno e aspirina, que causam problemas de estômago, ou como morfina e codeína, que têm problemas de tolerância e adição.
“A gravidade surpreende-me tratando-se de um canabinoide. Em geral, não há risco de coma nem de morte cerebral. Mas nunca se está a salvo do efeito de uma dose”, diz, citado pelo JDD, Frédéric Sedel, neurologista e presidente da MedDay – empresa farmacêutica especializada no tratamento de distúrbios do sistema nervoso.
O sistema endocanabinoide está envolvido em processos como apetite, sensação de dor, humor e memória, mas também em efeitos psicoativos da canábis – quando esta droga é usada. “Tomar fármacos que são inibidores de FAAH deveria, teoricamente, levar a um aumento da concentração de endocanabinoides naturais no cérebro e como tal reduzir a dor, estimular o apetite e melhor o humor e memória”, refere Alan Boyd, presidente da Faculty of Pharmaceutical Medicine (Ordem da Medicina Farmacêutica britânica).
“Os inibidores de FAAH podem ser reversíveis ou irreversíveis”, continua Munir Pirmohamed. Mas pouco se sabe sobre a molécula BIA 10-2474, que alegadamente a Bial estaria a testar. “É interessante notar que as revisões sobre os inibidores de FAAH referem que existem várias drogas em desenvolvimento por muitas empresas, mas a BIA 10-2474 raramente é referida. É surpreendente a falta de informação sobre BIA 10-2474 na literatura científica validada, por parte do fabricante.”
Como potenciais causas para o incidente com este ensaio clínico, Munir Pirmohamed aponta uma contaminação do lote, mas lembra que, normalmente, tanto o fabrico dos fármacos como o desenvolvimento dos ensaios clínicos obedecem a várias normas rígidas de segurança. Outra causa que justificaria os acontecimentos pode ser um alvo involuntário da molécula, ou seja, que a molécula se esteja a ligar a outro recetor no organismo produzindo efeitos secundários inesperados.
Para finalizar, o professor lembra que o registo de segurança em ensaios clínicos de fase I é muito bom. “O relatório de 2012 da APBI [Associação das Indústrias Farmacêuticas Britânicas] registou uma taxa de incidência de 0,02% para a ocorrência de efeitos indesejáveis graves nos ensaios de fase I.” E conclui: “Os ensaios de fase I permanecem uma parte vital do processo de desenvolvimento de novas drogas. Sem estes ensaios, não teríamos nenhum fármaco novo, que são muito importantes para tratar muitas doenças e sintomas para os quais temos poucas opções”.
Atualizado às 23h50