Em 1971, o realizador Richard C. Sarafian rodou “Um Homem na Solidão”, filme baseado numa história real, passado na América do início do século XIX, sobre o guia de um grupo de caçadores de peles e comerciantes (interpretado por Richard Harris) que foi atacado por um urso e deixado por morto no meio da natureza, mas conseguiu sobreviver e regressar à base. Esta é exactamente a mesma história que é contada por Alejandro González Iñárritu (“Babel”, “Birdman”) em “The Revenant: O Renascido”, nomeado para 12 Óscares. Só que poucas pessoas ainda deram por isso. Entre um filme e outro, a história do dito guia, Hugh Glass de seu nome, agora interpretado por Leonardo DiCaprio, foi revelada como tendo apenas um vago fundo de verdade, e sido acrescentada e exagerada com o correr dos anos, transformando-se em mais uma de muitas tall tales do Oeste americano, do tempo em que os EUA ainda eram uma jovem nação semi-desbravada.
[Trailer de “The Revenant: O Renascido”]
Em “The Revenant: O Renascido”, a personagem de DiCaprio é uma espécie de proto-Bear Grylls involuntário e ainda mais radical do que este, adquirindo, pela dimensão e quantidade das suas provações, uma dimensão quase bíblica, de Job americano das margens da civilização. A história de Hugh Glass, tal como Iñárritu – felizmente menos histérico da câmara e mais arrumado na montagem do que nos seus exasperantes filmes anteriores – a conta, é uma narrativa de sobrevivência extrema, uma aventura de resistência humana num mundo natural que não dá tréguas nem admite deslizes, alimentada por um incandescente desejo de vingança.
[Entrevista com o realizador Alejandro González Iñárritu]
Quase desfeito por uma ursa após um mortífero ataque de índios, e abandonado para morrer pelos caçadores de peles que guiava, Glass tem que se manter vivo no pino do Inverno, no meio de uma natureza cegamente inclemente e constantemente mortífera, e rodeado por humanos que se chacinam uns aos outros. Os índios matam-se entre si e matam os brancos, sejam franceses, sejam americanos, os franceses matam índios e americanos, os americanos matam franceses e índios e matam-se uns aos outros por dá cá aquela palha. Se Jean-Jacques Rousseau visse “The Revenant: O Renascido”, tinha um AVC antes de poder renegar tudo o que escreveu sobre a bondade natural do homem.
[Entrevista com Leonardo DiCaprio]
A primeira hora do filme é tão brutal como majestosa. Iñárritu parece inspirado pelo melhor Terrence Malick e pelas fitas de narrativas impossíveis e de “fim do mundo” de Werner Herzog. Há um ataque de índios ao grupo de caçadores, à beira do rio Missouri, filmado com uma fluência e uma desenvoltura assombrosas, um caos de chacina cuidadosamente coreografado. Sentimos a cada plano a natureza como sendo esmagadora mas também transcendente (o filme foi todo magistralmente fotografado com luz natural por Emmanuel Lubezki). E nem por um momento duvidamos que a ursa que, para proteger as suas crias, deixa Glass feito num oito, não seja real, apesar de ser na verdade mais um prodígio dos especialistas em efeitos especiais, variedade animais mecanizados.
A partir daqui, “The Revenant: O Renascido” centra-se em Glass e na sua odisseia sobre-humana para sobreviver, chegar ao forte e vingar-se do vilão do grupo (Tom Hardy), ao som da banda sonora semi-fantasmagórica de Riyuichi Sakamoto e Carsten Nicolai, e torna-se crescentemente selvagem – bem como repetitivo. É que Iñárritu não sabe quando parar e acaba por fazer demais, por forçar o realismo, por abusar da selvajaria, por enfatizar desnecessariamente o que já tornou óbvio antes, e por massacrar o seu herói até aos limites do sadismo.
[Entrevista com Tom Hardy]
Não lhe basta mostrar índios e brancos a despedaçar-se uns aos outros a todo o pé de passada, tem também de pôr um letreiro que diz em francês “Somos todos selvagens” no corpo de um índio morto; não lhe basta fazer Glass andar o tempo todo com a morte a morder-lhe os calcanhares, sob forma humana ou dos elementos, tem também de o mandar por uma ribanceira abaixo montado num cavalo, e depois fazê-lo tirar as entranhas ao animal morto e meter-se dentro dele para se abrigar de mais uma tempestade de neve; não lhe basta mostrar que ele está com uma fome canina, tem também de o mostrar a comer peixe cru do rio ou a rilhar carne não cozinhada de bisonte recém-caçado. Chama-se a isto forçar o consumo, e Iñárritu força-nos o da provação de Glass ao longo dos restantes 100 minutos da fita, nem sequer nos poupando a dois ou três anti-clímaxes na altura da vingança final.
[Nos bastidores da rodagem]
https://youtu.be/o_y5mzaKxlY
A beleza, esplendorosa ou intimidante, de várias sequências (e há duas ou três que nos vão ficar na memória visual para sempre, garanto) leva-nos à compreensão que a verdadeira personagem, a presença dominadora e mais poderosamente dramática de “The Revenant: O Renascido” é a própria natureza (a fita foi manivelada em vários países, dos EUA à Argentina, passando pelo Canadá e México, e actores e equipa técnica partilharam momentos duríssimos e perigosos, que já entraram para a história das rodagens épicas em Hollywood – e deram origem a alguns artigos sensacionalistas e alarmistas ainda antes de se ter estreado nos EUA).
[O tema musical do filme]
https://youtu.be/L4oEhmvaC4I
Por mais vicissitudes que Leonardo DiCaprio tenha passado nas filmagens (ele e os seus cinco “duplos”, reparem na ficha técnica final), o seu Hugh Glass é uma personagem que, essencialmente, sofre, geme e volta a sofrer e a gemer, um saco de pancada do semelhante e do mundo natural em redor, pelo que a sua nomeação para o Óscar de Melhor Actor apenas se compreende pelo equívoco de se confundir representação com resistência. O Óscar que “The Revenant: O Renascido” merecia de caras, não existe: seria o de Melhor Natureza Inóspita Mais Espantosamente Filmada.
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