O jornal francês Le Fígaro forçou a agência do medicamento francesa (ANSM) a divulgar o protocolo do ensaio clínico de fase I que a Bial encomendou ao laboratório Biotrial em Rennes. Além de disponibilizar o protocolo na própria página, o jornal francês ainda pediu a vários especialistas que comentassem sobre o mesmo. De notar que a versão do Le Fígaro (outubro de 2015) tem uma data diferente daquela que foi divulgada pela ANSM (julho de 2015).

Ainda que Le Fígaro não tenha identificado os cientistas nem as respetivas especialidades, a Nature já tinha feito um trabalho de análise equivalente, com conclusões e comentários muito semelhantes (e que o Observador reportou aqui).

Uma das críticas dos cientistas citados pelo Le Fígaro cai sobre José Francisco Rocha, chefe da Investigação Clínica da Bial, por ser detentor de uma licenciatura, em vez de um doutoramento. Mas o currículo do investigador no Linked in mostra uma experiência de cerca de 10 anos na empresa e 52 publicações na plataforma Research Gate. Além disso, o outro representante do promotor do ensaio clínico, Patrício Soares da Silva, diretor de Investigação e Desenvolvimento da Bial, tem o referido doutoramento.

Depois as críticas tornam-se mais sérias. Os investigadores que Le Fígaro consultou, mas que não quis identificar, referem que o protocolo é muito complexo e que, na verdade, é uma sucessão de estudos: grupos de toma única, grupos de dose múltipla, um grupo para investigação da interação com alimentos e um grupo para a avaliação farmacocinética (como se pode ver no protocolo).

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Outro ponto, é que não se percebe se os grupos de dose múltipla começaram os testes antes ou depois de todos os grupos de toma única terem terminado – o protocolo não é claro quanto a isso, como o Observador teve oportunidade de confirmar. Uma lacuna especialmente grave porque a forma como será conduzida a experiência com os grupos de dose múltipla depende da análise dos resultados obtidos com os grupos de dose única. “Este protocolo dá demasiada liberdade ao investigador”, acusou Pier-Vincenzo Piazza, investigador sénior no Instituto Nacional da Saúde e da Investigação Médica (Bordéus), citado pela Agence de Presse Medicale.

O protocolo previa que, nos grupos de dose única, entre o primeiro indivíduo a tomar o fármaco e os restantes passassem 24 horas, para salvaguardar a existência de efeitos adversos imediatos. Um especialista citado pelo Le Fígaro, mas não identificado, disse que sem se conhecer a molécula, não é possível afirmar se o efeito termina ao fim de 24 horas ou se é melhor esperar 48 ou 72 horas. Certo é que a ANSM, a quem compete analisar o protocolo, o aprovou com esta formulação.

Tanto para os grupos de dose única, como para os grupos de dose múltipla, o protocolo previa que “caso a dose máxima tolerada não fosse alcançada depois de concluídos os grupos sequenciais, mais grupos podiam ser adicionados”. Mas neste momento não se sabe se foi adicionado algum grupo na dose única ou na dose múltipla. Na verdade, nem se sabe a que doses foram sujeitos os grupos da dose múltipla.

Sem conhecer o protocolo ou os resultados dos ensaios pré-clínicos, os investigadores citados pelo Le Fígaro não sabem que tipo de efeitos podem já ter sido encontrados nos animais, ou se os testes em animais foram suficientes para prever que, à partida, seria seguro em humanos. Mais uma vez, competia à entidade responsável, neste caso a ANSM, verificar todos estes resultados e garantias de segurança e boas práticas.

Para finalizar, os especialistas apontam uma dúvida que tem intrigado outros cientistas: “Porque é que algumas pessoas tomaram um placebo?” Os ensaios clínicos de fase I servem para testar a segurança de um fármaco, se é tóxico e qual o nível máximo tolerado pelos indivíduos saudáveis. Só nos ensaios clínicos de fase II é que o fármaco é comparado com um placebo (que se assemelha ao fármaco que está em teste, mas sem o princípio ativo) ou com um medicamento já existente para demonstrar se é eficaz. “Temos a sensação que o laboratório queria economizar tempo e passar à fase II diretamente”, disse um dos especialistas.

Pierre Alain, antigo professor de farmacologia, e Christian Funck-Brentano, coordenador de investigação clínica no Hospital Pitié-Salpêtrière, contactados pela Agende de Presse Medicale (uma agência noticiosa na área da saúde), dizem que o protocolo não permite chegar à conclusão do que pode ter acontecido aos voluntários internados. É preciso conhecer os resultados dos ensaios pré-clínicos ter acesso à discrição clínica dos sintomas dos doentes.

A normas europeias permitem que uma nova molécula que esteja no início da sua investigação, ainda que na fase de ensaios clínicos, mantenha os resultados longe do domínio público. “No entanto, nestas circunstâncias, acreditamos que a segurança do doente deve ser mais importante que a sensibilidade comercial”, defendeu a Sociedade Britânica de Farmacologia. Entender a natureza da droga e qual a dose dada é importante para prevenir outras situações deste tipo com voluntários. “Uma libertação antecipada dos dados é crucial.”

Ben Goldacre, médico e um dos promotores transparência em ensaio clínicos com a plataforma AllTrials, afirmou que o caso em França veio mostrar que, mesmo depois do incidente grave com o ensaio clínico de fase I no Reino Unido, “ainda não resolvemos os problemas conhecidos sobre a transparência dos ensaios de fase I”. “Enquanto deixarmos que este secretismo perigoso continue nestes ensaios, aumentamos a probabilidade destes incidentes acontecerem.”

Atualizado às 17h50 com informação sobre José Francisco Rocha.