Deixar que a doença tome conta da vida do doente até ele morrer porque nada mais há a fazer. Medicá-lo para que não sinta dor e deixá-lo morrer em paz. Ou dar-lhe uma injeção letal para lhe provocar a morte. Tudo isso são formas de eutanásia. Mas, aos olhos da lei portuguesa, só esta última, a da injeção letal, é crime. A explicação é de Inês Fernandes Godinho, professora doutorada em Ciências Jurídico-Criminais, cuja tese de doutoramento é sobre a eutanásia. Uma explicação que do ponto de vista médico gera alguma controvérsia.
Ao Observador, a jurista lembra que a palavra eutanásia nem sequer integra a lei portuguesa. O ato médico de retirar a vida a um doente a seu pedido e com o seu consentimento é punível por via do artigo 134º do Código Penal, e chama-se homicídio a pedido da vítima. Não há na história da justiça portuguesa qualquer caso que, por via deste artigo, tenha chegado à fase de acusação, muito menos à de julgamento. “Eu penso que isto acontece porque estamos a falar de uma matéria muito cinzenta”, disse.
O tema não é preto no branco, é polémico e tem dividido opiniões. Uma polémica que não é nova. Foi a pensar neste dois campos – o do ponto de vista jurídico o do ponto de vista médico – que Inês Godinho avançou com uma investigação mais profunda sobre o tema. E lembra ao Observador que é preciso saber distinguir três formas de eutanásia em contexto médico para perceber que só uma delas é punível por lei.
Administrar uma injeção letal a um doente para lhe tirar a vida é eutanásia ativa, a única forma de eutanásia punida pela lei. Enquanto que administrar uma dose terapêutica para alívio da dor de um doente terminal e replicar essa dose, “mesmo que ela possa provocar a morte”, também é eutanásia ativa, mas não é ilegal. Inês Godinho refere ainda um terceiro tipo de eutanásia, a passiva, que é aquela em que o doente deixa a doença “tomar o seu rumo”, pede que não lhe sejam administrados mais medicamentos ou que lhe sejam desligadas as máquinas. E o médico é obrigado a respeitar. Neste caso também não está a cometer crime.
É uma questão de palavras, mas para a professora é uma questão “muito importante”. Depois de alguns profissionais de saúde terem vindo dizer publicamente já ter assistido a casos de eutanásia nos hospitais portugueses, “se percebermos a terminologia é meio caminho para nos percebermos uns aos outros”.
Inês Godinho, que assume que assinou a petição para legalizar a eutanásia, estudou as leis de outros países da Europa onde é permitida a injeção letal aos doentes terminais, cujos tratamentos médicos se revelaram ineficazes. Lembra que a Holanda, o primeiro país europeu a legalizar, acabou por alargar a lei aos menores o que suscitou algumas questões; que na Suíça – onde funciona a Associação Dignitas – existe uma norma semelhante à portuguesa, mas que foi criada legislação avulsa que permite o auxílio ao suicídio desde que por motivos “altruístas”. A Alemanha não pune o suicídio assistido, mas depois tem jurisprudência fixada para penalizar associações que possam vir a fazê-lo.
Não há uma solução satisfatória para todos. Acho que não podemos aceitar de ânimo leve revoluções jurídicas que instrumentalizem a pessoa e que a obriguem a viver”, refere.
Para a jurista, a haver uma mudança na lei deverá ser feita à semelhança da que foi feito com a interrupção voluntária da gravidez: através de legislação avulsa, mantendo os artigos 134 e o 135 (este último para o suicídio assistido) na lei. “A eutanásia tem um braço muito comprido, é preciso haver um debate profundo sobre a matéria com médicos e penalistas”, defende.
A lei, diz, a ser mudada deverá criar uma causa de justificação própria em ambiente médico e deverá garantir a objeção de consciência para os profissionais que não estejam de acordo ou que se sintam incapazes de o fazer. Uma perspetiva diferente do médico Eduardo Oliveira, que presta serviço no Hospital São João do Porto, para quem não existe estas diferenças de terminologias. Para o médico dos cuidados paliativos, esta não é a altura para se legalizar a eutanásia. A ser, esta não devia ser praticada pelos profissionais de saúde. Veja a entrevista que o Observador lhe fez.
“Não existe o termo eutanásia passiva porque ela é ativa por definição”
Como médico nos Cuidados Paliativos lida de perto com doentes terminais. Alguma vez algum lhe pediu para o ajudar a morrer? Se sim, o que fez?
Em oito anos de exercício de cuidados paliativos recordo-me de poucas situações de sofrimento intenso em que o doente pediu eutanásia. Quando o doente nos é referenciado atempadamente, o apoio de uma equipa de profissionais de cuidados paliativos pode ajudar o doente a encontrar algum equilíbrio e bem-estar de forma a encontrar de novo sentido na vida. Felizmente o sofrimento físico, como a dor, é na maioria dos casos aliviável de modo a que uma pessoa o possa tolerar. O sofrimento psicológico e a perda de sentido da vida só pode ser aliviado se houver tempo para se estabelecer uma relação de ajuda com o doente.
Quando, nos últimos dias de vida, o sofrimento é intenso e refratário à intervenção de uma equipa de cuidados paliativos, poderá ser oferecida ao doente a possibilidade de ficar a dormir através de uma sedação se ele assim desejar para o seu conforto. O grau de sedação é ajustado proporcionalmente de acordo com as necessidades de alívio de sintomas e vontade do doente. Estudos recentes referem que a sedação não antecipa a morte dos doentes.
Tem-se feito alguma confusão entre a utilização de morfina para o alívio da dor de doentes terminais e a morfina como causadora da morte. Pode explicar as diferenças?
A morfina é um dos medicamentos mais seguros que existe. Morrem mais doentes com anti-inflamatórios do que com morfina, seguramente. Se não existissem opioides o sofrimento seria insuportável. A questão é que a morfina está envolta numa série de mitos que levam a que demasiadas vezes a sua prescrição ocorra tardiamente quando o doente tem dores intensas ou não seja mesmo prescrita. Pode ser usada para controlar a dor em qualquer fase da vida e não apenas no fim da vida. A morfina não antecipa a morte dos doentes se for usada por médicos experientes em doses adequadas.
Há quem pense que a morfina é usada para sedar os doentes quando o sofrimento é refratário. Isso não é verdade. Se o doente necessita de um ansiolítico ou pede um sedativo por não tolerar o sofrimento não é a morfina que deve ser utilizada, mas outros fármacos sedativos como as benzodiazepinas de forma proporcionada às necessidades do doente. Esta é a forma correta de prescrever.
Qual a diferença entre eutanásia e distanásia?
Eutanásia significa matar alguém competente a seu pedido voluntário, através da administração de fármacos. Não é necessário que seja feito por um médico. Matar uma pessoa através de fármacos sem o seu consentimento (quer a pessoa esteja incapaz de consentir ou contra a sua vontade) é homicídio. Não existe o termo eutanásia passiva porque ela é ativa por definição. Distanásia é prolongar a vida artificialmente e de forma desproporcionada, dos doentes que estão em sofrimento intenso e sem esperança de recuperação. Chama-se também obstinação terapêutica.
Considera que em Portugal se tem generalizado a distanásia?
Infelizmente ainda se veem casos de distanásia diariamente em que os doentes são submetidos, por exemplo, a quimioterapias, ventiladores e múltiplas linhas de antibióticos quando já estão nos últimos dias de vida. Contudo os médicos estão mais sensibilizados e têm mais formação ética e sabem que o código deontológico proíbe expressamente a distanásia. Há também maior sensibilização dos doentes para discutir abertamente com os médicos o que é para si aceitável e inaceitável em termos de atos médicos. E para o caso em que as pessoas já não estão capazes de comunicar a sua vontade existe a possibilidade de realizar antecipadamente um testamento vital.
A aposta devia ser nos cuidados paliativos?
Os cuidados paliativos são a forma que se desenvolveu para aliviar as situações de sofrimento físico, psicossocial e espiritual dos doentes e seus familiares. A eutanásia não deve ser considerada um ato médico no meu ponto de vista. Não é o facto de ser realizado por médicos nalguns países que salvaguarda que seja apenas realizada a doentes em fase terminal com sofrimento refratário. A realização da eutanásia por profissionais de saúde iria gerar desconfiança generalizada pelos doentes. Nas situações de sofrimento em que os médicos não se sintam capazes de ajudar o doente, têm a obrigação ética de pedir ajuda de equipas especializadas de cuidados paliativos, de acordo com o código deontológico. E atualmente as que existem não conseguem dar resposta a todas a solicitações que são feitas. Por este motivo não me parece que esta seja a altura correta de legalizar a eutanásia.