Coleções, quase todos fazemos. Moedas, discos, cupões, o que seja. Susan Davidson, curadora sénior do Museu Guggenheim de Nova Iorque, tem “a sorte” de lidar com uma das principais coleções de arte do mundo, reconheceu esta quinta-feira no auditório de Serralves. A norte-americana esteve no Porto para falar sobre as coleções de arte de Peggy Guggenheim, John e Dominique de Menil, três figuras fundamentais na história do colecionismo do século XX e cujas obras conhece como a palma da mão. Trabalha-as há 30 anos. Pelo meio, acompanhou as mudanças no trabalho da curadoria e não tem dúvidas: “Os curadores ganharam importância“, admite em entrevista ao Observador. Isso é bom, mas também traz armadilhas.
“Colecionar é a poesia do objeto, o prazer de ter e o prazer de partilhar”, diz Susan Davidson perante a plateia que se deslocou a Serralves esta quinta-feira ao final da tarde para a ouvir falar de “Coleções e Colecionismo. Domínios da Luz – Duas Coleções”, a primeira de uma série de conferências do ciclo “Novas Perspetivas“. Autoridade não lhe falta. Tem 58 anos e conheceu pessoalmente John de Menil em criança, o que quer dizer que vive rodeada de arte desde sempre. Depois de estudar história da arte entregou-se à Coleção Menil, relevante sobretudo pela pintura surrealista. Em 2002, após 18 anos dedicada às obras reunidas por John e Dominique De Menil, foi recrutada pelo Museu Solomon R. Guggenheim. Não se recusa uma proposta destas.
Como curadora sénior tem sob sua alçada as coleções e as exposições, o que implica gerir os pedidos de empréstimos, tratar da conservação das obras e, claro, organizar mostras para os quatro Guggenheim: Nova Iorque, Veneza, Bilbao e Abu Dabi, ainda que a construção deste último ainda não esteja concluída. A última exposição que montou foi “Robert Motherwell: Early Collages”, dedicada aos primeiros trabalhos do pintor surrealista norte-americano. Tem liberdade para escolher as peças que quer para uma mostra mas, por muito disparatada que uma obra lhe possa parecer, como a “The Rain Room”, onde o visitante se limita a entrar e a apanhar com água na cabeça, só a põe de parte depois de a ver de perto. Tem um lema: “é preciso ver tudo”.
Como é ser curadora de um dos principais museus do mundo?
É incrível. Muito trabalhoso, diversificado. Somos seis curadores séniores e nenhum tem o seu próprio departamento, o que nos dá mais liberdade. Todos temos interesses especiais, claro, mas não há uma pessoa responsável pelos desenhos e outra pela fotografia, por exemplo. É maravilhoso ter uma coleção tão marcante e poder mostrá-la, não só em Nova Iorque, mas por todo o mundo porque somos uma instituição global, com museus e instalações em vários sítios. Em breve vamos ter um novo museu em Abu Dabi [Emirados Árabes Unidos] e outro possivelmente em Helsínquia [Finlândia].
Em Abu Dabi já houve exposições, mesmo sem o espaço definitivo. Que novidades há para o futuro Guggenheim de Helsínquia?
Saberemos nos próximos dias. O concurso para o projeto de arquitetura já terminou e agora é uma questão de reunir os fundos e os protocolos com o Governo finlandês.
Alguma vez consideraram abrir um museu em Portugal?
Vocês têm aqui este museu magnífico, não precisam de um Guggenheim [risos].
Já tinha vindo a Serralves antes?
Não, nunca. Estou muito entusiasmada por estar aqui. Estive para vir em 2007 por causa da exposição dedicada ao Robert Rauschenberg, o Bob foi um artista com quem trabalhei de perto durante muito tempo, mas não consegui vir.
Desta vez fui convidada pela Suzanne Cotter, a diretora do museu. Trabalhámos juntas no projeto do Guggenheim Abu Dabi e parte do desafio era construir uma coleção. Com a Coleção Sonnabend exposta no Porto neste momento — que é ótima, conheço o português António Homem há muitos, muitos anos, ele é uma figura importante no mundo da arte — a Suzanne convidou-me para vir cá falar, numa perspetiva histórica, de duas coleções que se formaram em meados do século XX, a da Peggy Guggenheim e a de John e Dominique De Menil. Eu conheci o John em criança e foi lá que comecei a trabalhar em curadoria. Eles foram das primeiras pessoas a abrir um museu privado nos Estados Unidos.
Trabalha há 30 anos como curadora. Na viragem do milénio houve quem tivesse dito que os curadores profissionais já não eram necessários e, ao mesmo tempo, há quem argumente que o culto do curador nunca foi tão grande. Como vê a evolução do papel do curador?
É uma boa pergunta. Eu ainda comecei a trabalhar nos chamados velhos tempos, antes de haver faxes, computadores e Internet. Mesmo assim, e ainda que eu acredite que o papel do curador se alterou muito e se tornou mais abrangente, com mais desafios, a metodologia… Quando eu comecei era preciso ter um diploma avançado em história da arte, trabalhava-se num ambiente muito mais controlado e regulado, faziam-se exposições, investigava-se e faziam-se publicações. Hoje é tudo mais abrangente e há muito mais pessoas ligadas à área.
Acho que a arte contemporânea requer uma forma diferente de tratamento em comparação com a arte em que eu trabalho, que é mais histórica, mesmo sendo do século XX e não tão antiga assim. Tem exigências diferentes na forma como se pensa, pesquisa e apresenta. E, por tudo isto, educa. Porque, no final das contas, é isso o trabalho de curadoria. É sabedoria. Hoje toda a gente fala em curadoria. Eu posso ir à J Crew [retalhista têxtil] e há quem fale no curador da coleção de roupa. A palavra “curador” tornou-se muito popular. As pessoas fazem curadoria de cocktails em bares, é… Nesse sentido tem a ver com seleção, mas não comporta o mesmo rigor e formação académica que um curador de um museu tem de possuir.
Como é que essa maior facilidade com que alguém se assume curador se reflete no trabalho apresentado?
Em obras contemporâneas parece haver maior facilidade, há mais procura e mais pessoas a assumir esse papel. Não acho que sejam necessárias tantas credenciais… É possível chegar lá por conta própria.
Sem afetar o resultado final do trabalho?
Não disse isso. Apenas que há oportunidades diferentes para chegar lá. E depois há instituições que têm curadores que pensam, pesquisam e trabalham todos os dias nas coleções que estão à sua responsabilidade. E apresentam-nas mais formalmente, num contexto museológico. Acho que existe uma diferença entre estas duas realidades. Não digo isto de uma forma snob, apenas estou a dizer que essa diferença existe. Podemos ir a um médico especialista ou a outro lado fazer um tratamento mais rápido. Bom, não sei se isto é um bom exemplo. Queria acresentar que uma das características chave na curadoria é ter um determinado nível de autoridade sobre o tema, em termos de conhecimento.
Falou sobre novos desafios que os curadores enfrentam atualmente. A preocupação de entreter o público é um deles?
Sim. É muito por aí. Acho que vivemos num mundo muito mais veloz e competitivo, há cada vez mais a necessidade de se ser hábil — seja o curador, o galerista mas, sobretudo, o artista — para se conseguir destacar à frente de tudo o resto e mostrar-se. Há mais gente a tentar, logo há mais competição para se ter sucesso.
Barreto Xavier, o ex-secretário de Estado da Cultura de Portugal, disse-me numa entrevista que “os curadores hoje em dia são quase mais importantes que os artistas porque determinam a existência ou a não existência efetiva de um artista”. Vê as coisas assim?
Acho que sim, que um pouco por todo o mundo os curadores ganharam importância. Mas não concordo com a ideia. Sem arte não existe curadoria. Precisamos da arte em primeiro lugar e o trabalho do curador é procurar no duro e com frequência, para depois tomar decisões. Se o trabalho for bom vai sobressair, por isso, mesmo que não haja um curador haverá um galerista a fazer-lhe justiça, sobretudo na arte moderna. Os artistas cujas obras eu trabalho, por exemplo, já morreram quase todos, pelo que existe um aspeto histórico subjacente e o curador é necessário. Na arte contemporânea, isto é, obras que estão a ser feitas hoje, é necessário primeiro que tudo a arte. Só depois surge o curador, ainda que os dois estejam bastante interligados na hora de disseminar a obra. Mas nunca diria que o curador é mais importante que o artista. Não é. Há muita gente a fazer arte que nunca foi mostrada e que nem sequer tem a ambição de ser artista. Criam porque têm isso dentro de si.
Na hora de selecionar uma obra para uma exposição, como gere o seu gosto pessoal e o do público? Inclui ou exclui uma obra de que não gosta particularmente mas que sabe que vai ser muito popular entre os visitantes?
É uma boa pergunta. Bom, há coisas muito populares que podemos igualmente respeitar. Por exemplo, fiz uma exposição em Abu Dabi e sabia que um dos trabalhos mais importantes que podíamos mostrar era o “Infinity Room” de Yayoi Kusama, que era um trabalho experiencial onde se entra e há milhares e milhares de luzes com paredes espelhadas. Toda a gente que lá entrava estava a tirar selfies, foi imensamente popular nas redes sociais e ajudou a popularizar a exposição.
Eu não compraria algo assim se eu fosse uma colecionadora, mas compreendemos a importância da obra para o envolvimento com as pessoas e para que compreendessem que há diferentes meios para fazer arte. Mas, sim, há coisas que vês e de que não gostas. Sentes que são uma fraude. Consigo lembrar-me chamada “The Rain Room”. Não sei quem é o artista. A pessoa entra na sala, chove-lhe em cima e depois de andar mais um pouco deixa de chover. Acho absurdo.
Selecionava-a para uma mostra se soubesse que seria muito popular entre os visitantes?
É preciso ver tudo. Porque não podemos tomar uma decisão fundamentada sem ter visto e experienciado uma obra. Não podemos ficar num pedestal a fazer comentários, é preciso haver envolvimento. É esse o meu compromisso.