O julgamento do ex-ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, acusado de violência doméstica, vai ser retomado a 13 de maio, soube o Observador junto de fonte judicial. As sessões serão retomadas precisamente três meses após a primeira audiência, que acabou num pedido de afastamento da juíza titular do processo.

O pedido de recusa da juíza Joana Ferrer Antunes foi formulado pelo advogado da apresentadora Bárbara Guimarães, assistente e vítima no processo, e pelo Ministério Público. Em causa estiveram algumas considerações da magistrada ao longo da sessão de julgamento, a 13 de fevereiro, no Campus de Justiça, em Lisboa. Várias associações manifestaram o seu desagrado relativamente às palavras da juíza.

Depois das suspeitas de parcialidade levantadas sobre a magistrada, a própria juíza Joana Ferrer também pediu escusa de julgar o caso. Os pedidos foram apreciados pelo Tribunal da Relação de Lisboa e a decisão, que se revelou difícil e dividiu juízes, acabou conhecida quase dois meses depois: Joana Ferrer continua no processo, mas deverá conduzir o julgamento de “forma rigorosa” e “escusando-se a fazer comentários e estados de alma que exorbitam claramente aquilo que se lhe pede”, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (que teve um voto vencido).

Mal foi notificada do acórdão, a juíza Joana Ferrer reagendou o julgamento. A próxima sessão está marcada para 13 de maio, pelas 14h00. E serão marcadas sessões até outubro. Fonte judicial disse ao Observador que “há mais de 70 testemunhas para ouvir”.

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As palavras da polémica

O tribunal da Relação de Lisboa debruçou-se sobre algumas declarações da juíza durante a audiência do julgamento de Manuel Maria Carrilho e considerou que a magistrada seguiu o julgamento em “sinal amarelo”. Depois de identificar formalmente o arguido, acusado de violência doméstica contra a apresentadora de televisão Bárbara Guimarães, Joana Ferrer disse:

“Devo dizer primeiro que os juízes também fazem os trabalhos de casa e eu fiz os meus (…). E interessa-me perceber o homem que tenho pela frente e que vou julgar. E constatei que o Senhor Professor alia a uma clareza de raciocínio uma clareza de exposição. Não obstante não irmos tratar de filosofia mas (…) do desmoronar da sua vida familiar eu vou pedir-lhe essa clareza de que sei de que é capaz.”

Quando Bárbara Guimarães relatou os episódios de violência de que terá sido alvo, e assumiu que não tinha ido ao hospital por vergonha, a juíza lembrou-lhe que só ter provas em fotografias poderia ser fraco.

“Olhe, eu vou dizer-lhe uma coisa. Eu sou uma juiz muito frontal e quem está a trabalhar comigo sabe. (…) As fotografias eu tenho… depois de ler a acusação eu fui à procura de prova pericial e eu encontro uma coisa insólita. Uma perícia a fotografias (…). Percebe que eu estou a antecipar-lhe … eu podia estar calada até ao fim da produção de prova, mas como gosto de dar logo aquilo como me estão a parecer as coisas, eu devo dizer-lhe… uma perícia a fotografias como pode calcular não tem valor de… (…) mas isto que aqui está para mim, digo-lhe, de coração aberto, vale zero. Zero”.

E ainda criticou o facto de Bárbara Guimarães não ter pedido ajuda às várias entidades competentes para o fazer:

“Os médicos estão obrigados ao sigilo profissional por amor de Deus. E numa sociedade como a nossa em que a violência doméstica está tão divulgada, tão difundida, números de atendimento à vítima, centros de apoio à vítima, tenha paciência, esse argumento é um bocadinho fraquinho.”

Joana Ferrer teceu ainda considerações sobre o casamento.

“Eu continuo sem perceber … da mudança radical de um casamento que aparentemente parecia um casamento de sonho. Eu devo confessar que andei a ver fotografias do vosso casamento que achei maravilhosas. E de repente há aí uma ‘césure’ [cisão], passa-se quase do paraíso ao inferno (…). Faz-me alguma perplexidade uma tão radical mudança num ser humano. Um ser humano não muda assim. Mesmo descontando o facto de envelhecer, de os anos passarem, deixar de exercer funções públicas, deixar de ser ministro, deixar de ser embaixador, deixar de ser uma data de coisas, faz-me um bocado de impressão como é que alguém de repente muda. Quer dizer, houve episódio antes, ou sequer laivos disso na primeira fase do casamento, laivos de violência, nomeadamente essa tendência para controlar o seu vestir, o seu estar, os seus programas (…)?”

Mais tarde, voltaria a falar do facto de Bárbara Guimarães não ter apresentado queixa de imediato:

“Sabe que eu na minha qualidade de juiz e depois de julgar ‘n’ processos de violência doméstica (…) me causa alguma impressão a atitude de algumas mulheres que no fim acabam mortas. E portanto (…) causa-me algum nervoso quando eu vejo mulheres que têm fundamento para apresentar queixa e queixa-crime andam a viver aqui um jogo de espelhos. Compreenderá o meu estado de alma de juiz que não goste de ver este tipo de atitude”.

A magistrada do Ministério Público ainda disse a Bárbara Guimarães que não tinha que se sentir mal por ter sentido vergonha e que ninguém a censurava no tribunal por não ter apresentado queixa. Mas Joana Ferrer não concordou:

“Eu censuro-a! Se tinha fundamento tinha de ter feito tudo direitinho. Está a perceber? Temos maneiras diferentes de pensar (…).”

Ao Tribunal da Relação, Joana Ferrer diz que as suas palavras foram interpretadas de forma “deturpada”, impugnando as acusações de parcialidade. A magistrada considerou não estarem, portanto, “reunidas as condições” para continuar a presidir o julgamento. E pediu escusa.

Os juízes do Tribunal da Relação consideraram que os requerentes até tinham razão para mostrar “desagrado” e que poderá ter havido um tratamento “desadequado, impróprio, excessivo ou insuficiente”. Dizem mesmo que a juíza se pôs “a jeito”. No entanto, do ponto de vista jurídico, não existe fundamento para recusá-la. “A senhora juiz fez uma condução da audiência em permanente e claro sinal amarelo, não tendo chegado a pisar o vermelho”. Mas não existem factos “indiciadores” de que o seu comportamento possa ser suspeito.