Bárbara Alves da Costa quis deixar tudo para trás: o trânsito infernal que todos os dias ligava a sua casa, em Cascais, ao trabalho, em Carnaxide; o trabalho exigente de produzir e editar reportagens televisivas e, em suma, a rotina frenética em que tinha caído com o marido e as duas filhas. Aos 40 anos, e depois de muitas fatalidades no círculo familiar, a jornalista tomou uma decisão que ainda hoje descreve como ousada: virar as costas a Lisboa e rumar ao Alentejo profundo, onde atualmente gere um turismo rural. “Comecei a ficar cansada de me ouvir a dizer às minhas filhas ‘despachem-se, vamos chegar atrasadas!’. Comecei a sentir-me responsável pelo desequilíbrio matinal [na família] e a olhar para a vida dos miúdos. Queria mais tempo”, diz Bárbara ao Observador, do outro lado da linha do telefone.

Talvez sem saber, Bárbara Alves da Costa é uma adepta do movimento slow, conceito que olha para o tempo e a sua gestão como o derradeiro bem (imaterial) do ser humano e que contraria a agitação da vida moderna, feita de compromissos cumulativos, correrias constantes e muito poucas pausas. “A ideia é abrandar porque o mundo se tornou demasiado rápido. O movimento não promove a lentidão excessiva, procura antes o equilíbrio”, afirma Raquel Tavares, membro da direção da Associação Portuguesa de Slow Movement, nascida em 2009 para ajudar a desacelerar os ponteiros do relógio de quem mais precisa. “O movimento quer contraria a velocidade e o stress. É uma questão de dar tempo ao tempo.”

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Na imagem é possível ver Bárbara Alves com o marido Pedro, as duas filhas e o enteado. Foto: Rita Ferro Alvim

Atualmente, basta olhar em volta para perceber que a sociedade ocidental está assente em rotinas desenfreadas que não raras vezes produzem uma mesma resposta: “Não tenho tempo” ou “estou cansado/a”. Mas desengane-se quem pensar que o movimento é recente. Surgiu na Itália de 1986, quando um homem decidiu opor-se à abertura de uma cadeia de fast food no centro histórico de Roma ao criar o slow food. Foi apenas uma questão de tempo até o conceito se expandir a outras áreas — slow travel, slow school e até slow cities — com o slow movement a servir de chapéu para a diversidade de esferas da vida social que se renderam a um ritmo mais lento de viver.

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Mas porquê abrandar? A frase “live fast, die young” (vive rápido, morre jovem) pode ter muitas associações. Uma delas remete-nos para o ator norte-americano James Dean que morreu precocemente aos 24 anos quando acelerava num Porsche, não que por isso lhe tenha sido retirado o estatuto de ícone cultural. Raquel Tavares é a primeira a admitir que viver rápido tem o seu glamour, mas não esconde que há custos associados a essa opção de vida: desde os sociais, com o enfraquecimento dos diferentes relacionamentos, à saúde (seja disso exemplo a prevalência do stress no quotidiano de muitas pessoas) passando ainda pela desumanização das cidades.

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Foto: esinesra/iStock

A cultura da competição e da impaciência

O movimento slow tem no jornalista canadiano Carl Honoré a sua personalidade máxima, ele que está habituado a falar em público e a dissertar sobre o tema — é, inclusive, o autor do livro O Movimento Slow, edição de 2006 da Estrela Polar. Contactado pelo Observador, Honoré disponibilizou um sem-fim de entrevistas que já deu e das quais é possível extrair uma mesma tese: que a cultura atual leva-nos a fazer mais e mais com cada vez menos tempo e que, ironicamente, temos medo de desperdiçar tempo, pelo que dificilmente tomamos a decisão consciente de abrandar. Para isso também ajudam as tecnologias, uma realidade que permite estarmos sempre ligados, seja no trabalho, na rua ou em casa com a família e amigos.

Honoré também é da opinião de que vivemos hoje numa cultura assente na competição e na impaciência, que queremos que tudo seja perfeito e imediato, o que traduz-se em excesso de pressão sobre os mais novos, com alguns pais a desejarem crianças Alfa ou super-crianças:

As crianças que estão sob pressão para serem perfeitas podem tornar-se menos criativas. Elas não têm tempo ou espaço para explorar o mundo nos seus próprios termos, para aprender e cometer os seus próprios erros. Elas não aprendem a pensar por elas próprias. Apenas fazem o que lhes dizem para fazer”, chegou a dizer em entrevista ao site Sloyu.

A portuguesa Raquel Tavares concorda: “As crianças também são afetadas. Têm imensas atividades e é-lhes exigido que sejam pequenos adultos. Estimula-se a competição desde muito cedo entre os mais novos. Parece que os pais sentem-se culpados por as deixar brincar, como se isso fosse fomentar um sentimento de preguiça. Elas precisam de mais tempo para serem felizes do que para serem melhores”, conclui.

Abrandar também no trabalho?

É considerado um dos melhores instagramers portugueses e já foi convidado para uma exposição em Nova Iorque. A carreira de Luís Mileu vai de vento em popa, mas nem por isso o sucesso se mede em carga horária. Há cerca de seis meses o brand designer deixou a empresa onde trabalhava, sendo que um ano antes negociara com o seu atual ex-chefe uma redução de horário. “Resolvi propor uma redução de horário que implicou também uma redução do meu ordenado”, conta, não sem antes admitir que o cargo que ocupava era muito exigente, com noitadas atrás de noitadas. “Acertámos que eu não trabalhava na última semana de cada mês, fora algumas exceções. Acabou por ser muito bom, foi um ano ótimo”, confessa.

Se é certo que Luís Mileu tomou esta decisão para ter mais tempo para projetos pessoais, como a fotografia, também o fez de modo a passar mais tempo com a filha: “Essa era uma semana de pausa, para ter mais tempo para mim, para viajar, para ir buscar a minha filha à escola, coisa que nunca acontecia. Para ter mais qualidade de vida. Podes ganhar menos, mas o que ganhas para ti é algo muito difícil de mensurar.” Não ignorando que a sua escolha pode ser tida por muitos como um luxo, Mileu explica que a semana de intervalo funcionava como um boost de criatividade.

Ser produtivo não tem nada que ver com entrar às 09h e sair às 23h. Pelo contrário. Passamos dois meses a falar das férias que vamos ter e, depois, dois meses a falar das férias que tivemos. Pelo meio parece que não há nada de extraordinário.”

https://www.instagram.com/p/37fRh_Es-p/?taken-by=mileu

Luís Mileu não é o único a pensar assim, isto é, a defender que as horas em excesso não funcionam como estímulo para a criatividade e produtividade individual. São muitos os estudos que têm demonstrado uma mesma realidade, tal como a pesquisa conduzida por John Pencavel, da Universidade de Stanford — aqui citada pelo blogue da publicação The Economist — que mostrou, com base em dados da Primeira Guerra Mundial, que a redução de horas pode ser uma mais-valia quando o que está em causa é a produtividade. Em outubro de 2015, era a vez do Financial Times dedicar um artigo por inteiro ao facto de estarmos a trabalhar mais e pior. “A morte das 40 horas semanais está a matar-nos” servia de título para explicar que a carga horária de trabalho aumentou de forma generalizada desde o despoletar da crise económica (2007-2008) — o artigo dava conta de um estudo que analisou a carga horária de 10.000 indivíduos a trabalhar a tempo inteiro em oito países.

Como se mais provas fossem precisas, o relatório How’s Life da OCDE, também de outubro de 2015, indicava que a percentagem de pessoas que trabalha rotineiramente 50 horas ou mais por semana aumentou em muitos países da OCDE entre 2009 e 2013, Portugal incluído, onde se registaram aumentos superiores a quatro pontos percentuais (a par e passo com o Chile).

Nem de propósito, na ordem do dia está a reposição das 35 horas de trabalho semanais na função pública (em vez das 40 determinadas pelo anterior Governo). O diploma final vai ser votado no próximo dia 27 de maio, pelo que este é um tema quente, a escaldar. Os deputados do partido Os Verdes vão mais longe e propõem que a medida se aplique também ao setor privado. “Não há trabalhadores de segunda e de primeira. O princípio da igualdade recomenda defender as 35 horas para o público e para o privado”, explica ao Observador o deputado José Luís Ferreira, defendendo que “as pessoas não podem só trabalhar” e “precisam de mais tempo para estar com as suas famílias”. “As pessoas também precisam de descansar para produzir, não somos máquinas. E isto também é recomendável por motivos de saúde.”

Motivos de saúde. Gira o disco e toca o mesmo. A ideia do excesso de trabalho desencadear problemas psicológicos e até físicos não é nova, sobretudo no Observador, onde já antes explicámos mais do que uma vez quais os malefícios do stress. Mas parece que ainda há mais a dizer. À conversa junta-se o psicólogo Pedro Barbosa da Rocha para explicar como o culto do trabalho — a dedicação extrema ao trabalho — é um problema cada vez mais real:

Há diferentes motivos para isso. Um deles pode ser a escassez de trabalho, isto é, a necessidade de mostrarmos que somos mais competentes, o que nos leva além da nossa saúde mental e física; os motivos individuais, relacionados com características de personalidade e ou experiências de vida; e o culto empresarial, no sentido em que a própria empresa pode influenciar ou estimular uma atitude de demasiada dedicação às funções profissionais.”

O especialista da Oficina de Psicologia é da opinião que, atualmente, vivemos para trabalhar em vez de trabalharmos para viver. Talvez não seja então de estranhar que há quem procure no seu trabalho um sentido de valorização pessoal e até de identidade. “As pessoas definem-se através do trabalho e muitas vezes não sabem parar.” É precisamente a inexistência de abrandamento — o oposto do que o movimento slow defende a pés juntos — que está na origem de situações de burn out.

A expressão inglesa associada ao stress crónico acontece em três níveis: se num primeiro a pessoa sente exaustão física e emocional (falta de energia e de motivação, dores musculares e perturbações gastrointestinais), ao fim de algum tempo acontece o processo de despersonalização, no sentido em que muitas vezes se evita o contacto social; a terceira fase está relacionada com a baixa realização profissional e pessoal, ou seja, as pessoas tendem a pôr em causa a sua carreira e o próprio percurso de vida.

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Foto: iStock

Aprender a relaxar e a abrandar

Parar e abrandar é regra numa sociedade em fast foward, mas para isso “não é preciso mudar da cidade para o campo, bastam pequenos passos”, esclarece Raquel Tavares, da organização que representa o movimento slow em solo nacional. É ela quem argumenta que o fundamental é dar vazão ao que de facto é importante, além de pôr limites nas atividades excessivas que tendemos a concretizar. Já o psicólogo Pedro Barbosa da Rocha chega a sugerir mindfulness como um exercício de relaxamento, sem nunca pôr de lado exemplos como a atividade física, a meditação, os cuidados da alimentação e a higiene do sono — segundo dados de 2009-2010 recolhidos pela Associação Portuguesa do Sono, 25% dos portugueses dorme menos de seis horas por noite.

Na equação entra também um documento disponibilizado por Honoré, onde este dá sete motivos para fazer uma pausa, adiantando que tal permite:

  • carregar energias;
  • olhar para trás e aprender com o passado;
  • refletir e ver além dos dilemas triviais;
  • tirar prazer de alguns momentos;
  • conectar-se com as pessoas;
  • ser mais criativo e até
  • salvar o mundo.

Repita-se que para integrar a filosofia slow não é preciso deixar a cidade em busca de ar (mais) puro, mas no caso de Bárbara Alves ajudou. Ficar diariamente retida entre um exército de carros e comprimir a agenda ao máximo são coisas do passado — certo que o despertador toca à mesma no Alentejo e que há tarefas a cumprir, mas o ritmo é outro. Bárbara diz acordar e adormecer com os pássaros e, ao longo da conversa com o Observador, repete a ideia de que o céu alentejano é um autêntico planetário. “Não cortei relações com a cidade, mas optámos por viver aqui e compensou. Aqui tudo é diferente. É como se o tempo parasse. Sinto que desacelerei imenso, estou muito mais calma”, conta, ao mesmo tempo que admite que já estranha as buzinas de cada vez que regressa a centros mais urbanos. “Se eu buzinar é porque apanho ovelhas no caminho. E se me cruzar com um carro na estrada já é uma sorte.”