A capital continua a ser pensada. Desta vez foi o tema da conversa acolhida pela Trienal de Arquitectura de Lisboa, que esmiuçou e desmontou os novos tempos envoltos pelo fantasma do turismo e os receios dos residentes. O palco do debate foi o terraço do Palácio Sinel de Cordes, ali bem perto do Panteão Nacional. As cadeiras vazias em “U” assumiam um número jeitoso, mas acabariam por ser insuficientes para as mais de 100 pessoas que foram oferecer a sua visão e, principalmente, ouvir sobre os novos desafios de Lisboa, as “alteração das dinâmicas da cidade” e “sobretudo da grande subida do preço da habitação”, que se situou nos 33,5% desde 2013.
Houve de tudo: palmas, gritos de apoio, burburinho, alguns apupos, muita concordância, pouca discordância, timidez perante a própria situação e até quem tenha apelado à “expropriação” e “ocupação”. Catarina Portas, empresária e membro do conselho consultivo do programa da Câmara Municipal de Lisboa Lojas com História, e Daniel Oliveira estiveram presentes. O segundo participou na discussão e disse que era importante compreender o equilíbrio entre “não matar a galinha dos ovos de ouro e não deixá-la que nos mate a nós”, até porque a situação surgiu durante uma crise económica.
Um grupo informal de habitantes da cidade, como se autointitulam, decidiu criar um evento para dar a conhecer um documento que traça o diagnóstico da “gentrificação” e do referido bar aberto de alojamento local (o foco centrou-se no Airbnb) e abertura de hostels e hotéis — usou-se algumas vezes o termo “sangria”. O documento desse grupo informal é assinado por Ana Bigotte Vieira, Catarina Botelho, Joana Braga, António Brito Guterres, Leonor Duarte, Luísa Gago e Luís Mendes.
Gentrificação (Priberam): Processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos residentes com menor poder económico para outro local e da entrada de residentes com maior poder económico
“Urge estancar a sangria do centro histórico da cidade e regular a actividade turística para que sirva os interesses da cidade, de quem a habita e de quem a visita”, pode ler-se no documento. Este movimento censura também as condições especiais para “reformados gold” estrangeiros, que gozam de dez anos de isenção de impostos se receberem, pelo menos, dois mil euros e que tenham como primeira morada Portugal. Um dos convidados até chamaria a tal medida “inconstitucional”, e que sendo assim Portugal era um paraíso fiscal. “Um offshore”.
Os organizadores defendem que “a grande intensificação do turismo em Lisboa tem implicado transformações significativas na vida de quem nela habita”. Para o explicar, e explicitar, procuraram aclarar o momento de viragem. A nova lei das rendas, que entrou em vigor por condição da troika, foi tida como o trigger para a situação insustentável. “Ontem, no Airbnb, havia 7.500 alugueres disponíveis, sendo que 80% delas eram casas inteiras”, explicou um dos assinantes. A nova lei, aliada às políticas da Câmara Municipal de Lisboa, dizem, tem promovido a subida dos preços das rendas e, assim, empurrado os locais para fora do centro.
“O imobiliário é o filet mignon”
O pontapé de saída foi dado pelos homens e mulheres da casa, que rapidamente passaram a bola aos convidados: Joana Gorjão Henriques (jornalista do Público), Manuel Graça Dias (arquiteto), Pedro Bingre (investigador no CERNAS, IPC e Centro de Estudos Regionais e Urbanos — IST), João Seixas (investigador na FCSH-UNL) e José Manuel Henriques (investigador no ISCTE).
“É tudo menos xenofobia o que se passa”, explica João Seixas, que diz simplesmente querer “vida quotidiana”. O investigador apela à “fiscalidade global”, pois “60%” não estarão com a situação legal. Ou seja, não pagam impostos. “Em Barcelona, por exemplo, quem arrenda 60% do tempo é já considerado atividade económica”.
Manuel Graça Dias, que defende uma carga fiscal maior para os turistas, mostrou-se cético quanto às soluções exigidas pelo grupo, que, entre outras, visam a “realização de uma nova lei restritiva do alojamento local” e suspensão da atribuição de licenças para hotéis e hostels. Daniel Oliveira também torceu o nariz a este último ponto, alegando que fechar a porta aos hotéis só traria mais pressão para o alojamento local.
Graça Dias gostaria de ver também reduzido o IMI, o que aconteceria em sentido contrário para o alojamento temporário. E deu uma ideia: um cartão de turista, que registe tudo o que este compra, para depois ser-lhe devolvido 5% do valor gasto no país. “Isto obrigaria a pedirem faturas”, defende. “Há uma grande balda nos pagamentos aos fisco.” Também a alteração da natureza das lojas e comércios deveria ser taxado, conforme o seu setor ou dimensão da mudança. Ou seja, se uma loja se direcionasse apenas para turistas, esquecendo os serviços para locais que antes prestava, deveria pagar mais. Quanto mais radical fosse a alteração do negócio, mais pagaria.
“Quem é que é senhorio no Airbnb aqui?”, questiona a jornalista convidada, desafiando os presentes, no lançamento da sua participação. Apenas uma mão se viu no ar. Uns segundos depois lá surgiram mais três ou quatro, o que promoveu umas gargalhadas. “Quem não se importaria de viver num prédio com alugueres Airbnb?” Aqui já se viram mais braços, mas eram uma clara minoria.
O homem que agarrou aquela gente foi Pedro Bingre do Amaral, que até ganhou o direito a furar o tempo previsto para cada um, a pedido do público. A sua teoria baseou-se na ótica do investidor, que tem muito mais a ganhar no setor imobiliário do que na aposta em obrigações do tesouro ou investimentos no banco. “O imobiliário é o filet mignon. (…) Os investidores metem dinheiro onde há pessoas e se façam poucas perguntas”, defende.
“Que história é esta dos reformados [estrangeiros] não pagarem impostos!? Então Portugal é um offshore! Até devia ser inconstitucional, por violar os princípios da igualdade”, diz. O investigador considera que o IMI “precisa de subir” e que “IRS e IRC é que têm de descer”, caso contrário o estrangeiro ou residente temporário tem “o melhor de dois mundos”.
Bingre do Amaral defende que vivemos em tempos que podem mudar “a qualquer instante”, e dá um exemplo cru, bem presente na sociedade moderna: “o aumento das rendas está relacionado com o fluxo de turistas, mas quando houver um atentado terrorista… isso acaba”. Ou diminui.
“Há duas palavras que causam pudor: expropriação e ocupação”
Uma hora e tal depois do arranque, era a vez daqueles que ali estavam como ouvintes, participantes, moradores, arrendatários, senhorios e curiosos, darem uso à palavra. Passou a dezena de intervenções. “Foi explicada a visão do investidor, mas gostaria de ouvir como ficar a viver em Lisboa”, dispara o primeiro participante, que usa o termo “libertinagem” para descrever o setor imobiliário, que, diz, está ao dispor das “medidas neoliberais” colocadas em marcha nos últimos tempos. Depois, deu o exemplo de Porto Santo, na ilha da Madeira, que “ficou totalmente dependente do turismo”. A “Disneyland”, que se pode transformar Lisboa, preocupa-o.
Um senhor mais velho e ponderado, pelo menos no tom, agarra o microfone e vai direito ao assunto: despejos. “Acabou contrato, passe bem, quero fazer outra coisa com isto”, foi assim que descreveu o que chama de “despejo arbitrário” e mostrou-se especialmente preocupado com o futuro dos reformados.
Finalmente, surgiria uma voz dissonante. “A nova lei das rendas é apontada como responsável disto tudo, mas, antes disso, Lisboa já tinha perdido meio milhão de habitantes”, defende. “Caíam prédios! Não havia um mercado de arrendamento. Lisboa é das melhores cidades do mundo. O mundo é global. Por isso, os preços ainda vão subir mais”, por esta altura já se ouviam algumas gargalhadas e bocas. “Ainda há muito por reabilitar!”
Tal e qual como num guião de um filme, talvez para aligeirar a coisa, surgiu ao microfone um homem pacato e pachola, orgulhoso por ter sido nascido e criado em São Vicente, um bairro histórico da capital. “Lisboa mudou muito, para pior!”, atira. “Antes andava na rua e via São Vicente, agora vejo estrangeiros. Outro dia ouvi um estrangeiro a dizer que estava em Alfama… Fiquei ofendido”, diz, num tom simpático-indignado, arrancando senhoras risadas do público. “Vai haver eleições, levem este debate a quem pode tomar decisões, por favor!” E lá recebeu uma das ovações da tarde, discutindo o protagonismo com Bingre do Amaral.
Quente, frio, quente, a ferver. A seguir interveio um jovem mais exaltado, incomodado com a apatia e acalmia muito lusitana, torcendo o nariz ao “consenso perverso e perigoso” do documento. “Acham que o poder vai lutar estes interesses?! Há alergia e medo em organizar grupos de cidadania de ação direita. Há duas palavras que causam pudor: expropriação e ocupação”, disse, enquanto os aplausos ocupavam aquele terraço belíssimo, com árvores com folhas diferentes, paredes cor-de-rosa e janelas altas.
“Quem tem a casa fechada devia ser muito taxado!”, diz uma senhora, com a voz firme e a convição sólida como uma rocha. “Se isso se prolongar no tempo, então devia ser expropriado!”
O outro lado da moeda também deu à costa, pela voz de uma senhora, que arrenda e pretende que não se diabolize o alojamento local, pedindo que estas iniciativas não se resumam àqueles que estão contra. Foi pedido diálogo e um leque de convidados mais heterogéneo, para haver uma discussão mais ampla e justa. E foi pedido mais: “dados”, para a discussão ser mais clara.
A caminhar para a reta final, Daniel Oliveira, ex-deputado do Bloco de Esquerda e comentador do programa “Eixo do Mal”, programa da SIC Notícias, deu o seu contributo. “Parabéns por terem fundamentado bem o diagnóstico”, começa por dizer, censurando depois que a cidade dependa apenas de um motor — o turismo. É necessário compreender, diz, como “não matar a galinha dos ovos de ouro e não deixá-la que nos mate a nós”. Daniel Oliveira considera que a situação “vai piorar” e que isso resulta da “democratização do turismo”. Para reverter a situação, serão necessárias “medidas fiscais”, assim como a “limitação do tempo de ocupação” e o “poder de veto dos condomínios”
O comentador televisivo discorda com mais veemência apenas de um ponto: “a história dos hotéis” — a suspensão das licenças para hotéis e hostels. “O resultado seria uma pressão brutal no mercado do alojamento local e Airbnb.”
O que pretende o grupo que promoveu esta ação?
- Suspender a atribuição de licenças a hotéis e hostels até à elaboração de um estudo sobre os impactos do turismo em Lisboa, à semelhança de outras cidades e em permanente atualização, com o objetivo de definir os impactos do turismo e índices de capacidade de carga turística da cidade.
- Realização de uma nova lei restritiva do alojamento local, à semelhança de outras cidades (Ex: Barcelona, Paris, Berlin, Nova Iorque, Londres, São Francisco).
- Revogação da lei dos ‘reformados gold‘ ou limitação da atribuição de estatuto aos residentes que se fixem em áreas especificas a definir. Ex. zonas despovoadas ou cidades do interior.
- Discussão e revisão da Nova Lei das Rendas (de acordo com o previsto no Programa do Governo da Cidade de Lisboa para 20132017).
- Promover estudos sobre o perfil dos novos habitantes da cidade e respetivas expectativas e motivações.
- Sensibilizar as associações de moradores para nas respectivas assembleias de condóminos implicarem formas de compromisso colectivo e consenso democrático que faça depender a criação de apartamentos para acomodação/alojamento turístico, de consenso unânime por parte de todos os moradores do prédio.
- Reter na cidade, e sobretudo nas comunidades mais afetadas pela turistificação, uma parte significativa das mais-valias económicas, criando canais de redistribuição dos proveitos/receitas geradas pelo turismo nos bairros, orientando-as, de forma transparente, para benefício das comunidades respetivas.