Depois de há dois anos ter sido ele uma das grandes figuras do Euro’2016, eis que Quaresma volta de novo à ribalta neste Mundial. Se o livre de Ronaldo que valeu o empate frente à Espanha no primeiro jogo, a trivela do Harry Potter frente ao Irão, no jogo em que foi pela primeira vez titular na Rússia, valeu a passagem aos oitavos de final. Entre um e outro golo, é preciso fazer rewind várias vezes para escolher qual o melhor. Por isso vale a pena reler a história do ‘mágico’ que vai fazer 35 anos em setembro (publicada originalmente a 13 de junho de 2016 e actualizado esta segunda após a trivela que colocou Portugal nos oitavos do Mundial).
Quando todos pensam que Quaresma está “arrumado”, ele ganha uma nova “vida” pela Seleção. E não só.
Vida N.º 1: Sporting-Barcelona
Tocou o telefone. O miúdo de 17 anos, nado e criado no Casal Ventoso, em Lisboa, atendeu-o. Estávamos no verão, julho de 2001.
Na época anterior, ainda juvenil, não fez um só jogo pelos “seus” Sub-17, fez poucos ou nenhuns nos Sub-19, mas Jean Paul chamou-o a fazer um punhado deles (quinze ao todo) entre homens de barba rija, pelos bês do Sporting. Tinha apenas 16 nos, era campeão Europeu de Sub-16 por Portugal, o melhor jogador do torneio disputado em Israel, e, adolescente, jogava entre adultos como se adulto fosse. Não tinha “cabedal” para eles. E até à canela é pescoço na II Divisão B, já se sabe. Mas levantava-se. Levantava-se sempre. E enfrentava-os, aos defesas, fintando-os, um, dois, e mais viessem, sempre “provocador”, sem temores. O que eles tinham em “músculo”, ele tinha em técnica. Fina. Finíssima. Como a que de melhor Alvalade (na altura Alcochete não existia na formação do Sporting e os treinos faziam-se perto do velhinho estádio José Alvalade) produziu, de Futre a Figo – o tempo de Ronaldo ainda não era aquele.
Voltando à chamada. Atendeu-a. Queriam que se apresentasse no estágio de pré-época com os graúdos – e entenda-se por “graúdos” Beto, Rui Jorge, Paulo Bento, Pedro Barbosa, João Pinto, Sá Pinto ou Mário Jardel. Apresentou-se e não lhe tremeram as pernas. Logo num dos primeiros jogos que disputou, contra a Académica, em Taveiro, Coimbra, László Bölöni fê-lo entrar na segunda parte, ele pegou na bola, não a passou a ninguém quando todos lha pediam, avançou em dribles no ataque, da esquerda para o centro, rematou em arco ainda de fora da área, e a bola só parou no canto superior direito da baliza de Pedro Roma. Na “gaveta”. De trivela. Tinha 17 anos.
Não voltou aos bês, quanto mais aos juniores. Era mais um no plantel que antes só via pela TV. O camisola “20” não fazia número: contava. Não, não foi sempre titular. Mas acabou a época de estreia no Marquês de Pombal, campeão, com mais de trinta jogos e cinco golos. Bölöni queria trabalhar-lhe o individualismo em excesso, colocá-lo ao serviço do todo – sem perder, com isso, a técnica, o rasgo, a alcunha que as bancadas lhe puseram: “Mustang”. Era um desalinhado, um espírito livre, dentro e fora do relvado. E “venceu” o treinador romeno, que na época seguinte o faria mais titular que suplente, mas sem nunca o conseguir “domesticar”. Ele não apoiava a defesa quando o Sporting perdia a bola, ponto final. E Bölöni deixou-o ser o que é: Quaresma. Ricardo Quaresma. Antes tê-lo a atacar como a atacava, com trivelas, pernas tortas, velocidade, dribles, cruzamentos e remates, potência, do que tê-lo “preso” em marcações e rigidez tática. Quaresma nunca foi de tática; a “tática” dele era resolver jogos. Sozinho.
Acabaria por sair do Sporting em 2003, a troco de 10 milhões de euros – e o empréstimo de Fabio Rochemback. O destino? A ciudad condal, Barcelona, e o Camp Nou. Seria, com Ronaldinho, a figura do novo Barça que Joan Laporta começava a erigir no pós-Louis van Gaal. O treinador que o acolheu também era holandês: Frank Rijkaard. E gostava de Quaresma, tanto ou tão pouco que rapidamente o fez titular. Logo no começo de época.
Na digressão dos catalães aos Estados Unidos em agosto, Quaresma partiu a loiça toda. E ganhou um epíteto na Catalunha: “Harry Potter”. Mas foi sol de pouca dura a titularidade e foi-se-lhe a magia das botas. Quaresma passou mais tempo no banco (e às vezes na bancada) do que no relvado, o cabelo que era à escovinha virou guedelha a reluzir de gel, descuidou-se, ganhou peso, perdeu uma “vida” das sete que parece ter. Porque é que deixou de jogar? Em parte, culpe-se o próprio Quaresma. Por outro lado, culpe-se um argentino, baixinho, muito baixinho, de 17 anos. Um tal de Leonel. Messi de apelido. Começava a escrever, por essa altura, a sua história em Barcelona. A ouro.
Vida N.º 2: FC Porto-Inter de Milão
Déjà vu. Onde é que os sportinguistas já viram isto? Um “menino bonito” que sai de Alvalade para o Camp Nou, que não dá uma para a caixa no Barcelona, e que regressa a Portugal, não para o Sporting, mas para um rival. Aconteceu o mesmo com Simão Sabrosa, em 2001, quando trocou o Barça pelo Benfica. Quaresma não seria contratado pelo rival da Segunda Circular, mas aterraria no aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, com destino ao estádio do Dragão e ao FC Porto campeão europeu.
Em três tempos, Quaresma voltou ao penteado curto, a barriguinha saliente foi-se e deu lugar ao six pack, e a magia, desaparecida, reapareceu como por… magia. A época do clube foi para esquecer – mas Quaresma ainda venceu, apesar de tudo, a Supertaça e a Taça Intercontinental. O FC Porto teve três treinadores nesse ano: Luigi del Neri, que nem aqueceu o lugar, o espanhol Víctor Fernández e, por fim, José Couceiro. Mas Quaresma, que herdou a camisola “10” de Deco, não foi só “do mal o menos” entre maus reforços, como Diego ou Luís Fabiano; foi o melhor. E acabaria nas três temporadas seguintes por sê-lo também, com três títulos de campeão em Portugal no bolso. Depois, saiu. Em 2008/2009.
Mourinho pediu-o para o Inter, Mourinho teve-o. Os “românticos” pensariam que Quaresma seria parte de uma tríade (com Ibrahimovic e Adriano) que infernizaria o futebol europeu por anos a fio. Quem o pensou, enganou-se. Redondamente. O Inter, aquele primeiro Inter de Mourinho, foi Ibrahimovic e mais dez. Mas nos restantes dez nunca se leu o nome de Quaresma – e muito menos o do mal-amado (pelo treinador) Adriano, deposto do lugar de “Imperador” de um dia para o outro.
Quaresma haveria de falar daquele ano com Mourinho. Diria que o treinador o quis mudar, conseguir dele o que Bölöni não conseguiu, torná-lo mais do Inter e menos do “Quaresma”, mas que, chegado a casa, e vendo a gravação do que fez na TV, Quaresma não se reconhecia. Sentia que tinha “desaprendido de jogar”.
Vida N.º 3: Inter de Milão-Chelsea
Pelo Natal, e cansado de ver os jogos sentado no banco de suplentes, Quaresma teve de Jorge Mendes, seu empresário, uma notícia, por fim, feliz. O Chelsea queria-o por empréstimo. Ou melhor, Scolari, de quem foi “o menino”, que o defendeu num Portugal-Sérvia com um soco em Dragutinović, chamava-o.
Mas a época dos londrinos era mesmo para esquecer, não havia volta a dar. Pouco depois de Quaresma aterrar em Londres, o treinador brasileiro foi despedido pelo “patrão” Roman Abramovich, que contratou para o seu lugar o holandês Guus Hiddink. Com ele, Hiddink, Quaresma fez cinco jogos. Cinco. Todos como suplente. 130 minutos na Premier League. Voltaria ao Inter na época seguinte. E venceu a Liga dos Campeões. Bem, “venceu” é um eufemismo aqui. Se na primeira temporada com Mourinho fez 19 jogos e um golo, na segunda só participou 13 e nem molhou a sopa.
Assim sairia do Inter. Com menos uma “vida”. O destino: a Turquia. E as liras turcas do Besiktas.
Vida N.º 4: Inter de Milão-Besiktas
A chegada ao aeroporto Atatürk, em Istambul, foi apoteótica para Quaresma. Adeptos aos milhares vestidos de branco e negro, tochas, cânticos numa língua que ao extremo era estranha, palmadas nas costas, sorrisos. Sentia-se feliz. Importante. Novamente importante.
Bernd Schuster, o treinador, deu-lhe “carta branca” em campo. E o Besiktas suportava-se nas costas de Quaresma. Durante dois anos foi assim. Quaresma não sentiu o peso e carregou-a. Fez golos de levantar a multidão no Vodafone Arena, fintou como só ele sabe, assistiu, a trivela estava bem oleada, no ponto, mas não venceu nada. Ou melhor, venceu: uma Taça da Turquia. Era pouco.
Naquelas duas temporadas, entre 2010 e 2012, apesar de tudo, da forma de Quaresma ser inegável, Paulo Bento não contava com ele. Talvez por estar longe, na Turquia, e afastado dos holofotes das principais ligas europeias. No apuramento para o Euro 2012 jogou pouco ou nada, acabou por ser convocado para a fase final, mas, apesar de Portugal ter chegado às meias-finais, nem do banco saiu.
Era um caso estranho, Quaresma. Nas camadas jovens, nas do Sporting e de Portugal, nunca ficou a dever nada a Cristiano Ronaldo. Aliás, fizeram uma dupla de extremos nos Sub-21 que encantava a Europa – quem viu, não mais se esquecerá de um Portugal-Inglaterra em Rio Maior –, e o “7” sempre se viu nas costas de Quaresma, empurrando ele para as de Cristiano Ronaldo um mero “11”.
A diferença sempre esteve nas escolhas de um e de outro — ou em como um e outro as aproveitaram. Ronaldo escolheu o Manchester e escutou Alex Ferguson; Quaresma, com Rijkaard ou Mourinho, o que lhe entrava pelo ouvidos saia com tanta ou mais velocidade do que aquela que tinha no relvado: mil à hora. O talento estava lá. Viu-se no Sporting e no FC Porto. Na Turquia também. Mas na Seleção, não. Não pela experiência no Besiktas, mas sobretudo pela não afirmação internacional, foi-se-lhe outra “vida”. A quarta.
Vida N.º 5: Besiktas-Al Alhi
Tinha 29 anos.
Estava na flor da idade. E como futebolista, no fina flor da maturidade. Nem velho, nem novo; no ponto. E quando a notícia começou a circular, quando se soube por uma fotografia nos jornais (daquelas com a camisola na mão e o presidente do clube ao lado) que Quaresma tinha assinado pelo desconhecido Al Ahli dos Emirados Árabes Unidos, a reação de todos era a mesma, estupefação, e a palavra que lhes saia da boca era só uma: “Acabou”.
https://www.youtube.com/watch?v=osO0Go4TnVM
Quaresma foi fazer o seu pé-de-meia. Alourou o cabelo. Nos Emirados joga-se pouco. E Quaresma andou uma temporada inteira para fazer 11 jogos, sempre a duas velocidades, devagar ou parado, e arrumar as botas em seguida. Certo? Errado. A “vida” perdeu-a nesta arcade do futebol. Mas ainda teria mais algumas para gastar. De volta a casa.
Haveria de dizer, sobre esta aventura das arábias: “Não sei o que me passou pela cabeça.”
Vida N.º 6: Al Alhi-FC Porto
Voltou ao FC Porto em 2013. Então, e aquela história de não se voltar ao lugar onde se foi feliz um dia? Quaresma não quis saber de provérbios e assinou.
Os milhões do Dubai já ninguém lhos tirava. Era tempo de voltar a desfrutar do futebol de primeira. E desfrutou. Com Paulo Fonseca, enquanto Fonseca se aguentou no banco portista, desfrutou. Mas desfrutava quase sozinho. Quaresma não desaprendera de jogar, o talento estava lá todo, puro como aos 17 anos, mas os azuis-e-brancos acabariam a época em terceiro lugar na Liga. Esse primeiro ano foi para esquecer.
Chegou Lopetegui ao Dragão no ano seguinte. E a relação entre os dois, sabe-se hoje, nunca foi a melhor. Quaresma queixa-se de “falta de honestidade” por parte do basco. Se não gostava dele, que lhe dissesse. Se o seu “desalinho” trocava as voltas ao tiki-taka (salvo seja; cedo se viu que não era), que lhe dissesse. Nunca disse. E Quaresma sairia do Dragão sem qualquer campeonato mais. E sairia dispensado. Não oficialmente, mas na cabeça do treinador sim.
https://www.youtube.com/watch?v=st0YbiCv5wM
A “vida” foi-se. E voltou ao Besiktas. Lá longe, na Turquia, nunca foi verdadeiramente feliz em títulos. Pelo que o provérbio não seria um problema.
Vida N.º 7: FC Porto-Besiktas
Sétima e derradeira “vida”, futebolisticamente falando. O sim ou sopas para Quaresma.
Não se esqueceram dele, os adeptos turcos do Besiktas – nem os adeptos rivais. Quando se soube que o Galatasaray estava interessado (Vítor Pereira também o queria no Fenerbáhce) em Quaresma, quase intimaram o presidente Erdal Torunogullari a contratá-lo. Aceitou? Claro que aceitou. É que os adeptos na Turquia não são bem, bem como os do Sporting — quando Quaresma assinou pelo FC Porto. Eles não ficam desagradados só; eles fazem rolar cabeças. Adiante.
Finalmente, à sétima “vida”, Quaresma foi feliz no Besiktas. Venceu a Liga turca — e contribuiu com quase tantos golos como assistências para Mario Gómez. O Besiktas era campeão sete anos depois. E isso valeu a Quaresma o “MVP” na Turquia, uma vida extra. Mais a mais, voltara a ser opção na seleção com Fernando Santos. Sempre saído do banco, mas sempre utilizado.
https://www.youtube.com/watch?v=p2K9BcsDgoA
Está feliz, Quaresma. Sorridente. Solto. E quis “desfrutar” — palavras do próprio no final do jogo com a Estónia mo Euro, no qual (tal como contra a Noruega, pouco antes) “pintou a manta” — do seu derradeiro Euro.
Vida N.º 8: o último Mundial?
Depois de ter voltado a ganhar o campeonato turco o ano passado (2016/2017), tendo feito 29 jogos e dois golos, este ano o seu Besiktas foi apenas quarto (a quatro do primeiro, o Galatasaray), com Quaresma a jogar 26 partidas e a marcar mais quatro golos, a que se junta mais um na Taça da Turquia (em três jogos). E ainda fez sete jogos da Liga dos Campeões (onde ficou em branco).
No apuramento para o Mundial, Quaresma foi titular em quatro jogos, mas não macou em nenhum… até que esta segunda-feira em Saransk n os meteu nos oitavos com aquela trivela do costume… Pode vir aí uma despedida, ou Quaresma terá nove vidas como os gatos?