Uma hora e meia de intensa e dura reunião parlamentar para apreciar um parecer (previsível) e aprová-lo (de forma igualmente previsível). O motivo é o que maior crispação tem provocado entre esquerda e direita — com chama mais intensa entre PS e PSD — nas últimas semanas: a Caixa Geral de Depósitos. O parecer negativo ao pedido da direita de auditorias externas ao banco público e também ao Banif foi aprovado, mas não sem antes a discussão (que era para ser feita em meia hora) passar por todas as fases possíveis num debate parlamentar: do humor à ironia, da picardia ao elogio, da política ao mais ínfimo detalhe jurídico (constitucional e regimental), dos ofensivos aos ofendidos. E até pelo desabafo do autor do parecer, já quase no final do longo debate: “Os cidadãos estão fartos de nós. Fartos de nós até ao tutano”.

Pedro Delgado Alves atirou, num tom de voz irritado, já a discussão levava mais de uma hora, clarificando o “nós” quando falava nos responsáveis pelo “desprestígio da política”: “Nós coletivamente, aqueles que são incapazes de colocar o serviço público à frente e que mancham o debate público”, disse. Mas, naquele caso, a primeira pessoa do plural não era afinal assim tão inclusiva (e autocrítica). O deputado socialista atirava ao outro lado da mesa, onde estavam sentados PSD e CDS que durante a reunião foram rejeitando as conclusões do parecer, pedido pelo presidente da Assembleia da República.

O texto argumentou contra o pedido de auditoria externa — pode ler aqui — do PSD e CDS. O PS assinava por baixo dizendo que a Assembleia da República não tem competência para isso. A direita não hesitou em dramatizar a questão, enfatizando duas ideias: a esquerda quer evitar auditorias à Caixa e fica aberto um “precedente gravíssimo”, com o chumbo destas avaliações externas.

Não querem esta auditoria, votem contra. Agora não tentem, de caminho, criar o precedente de captura das competências da Assembleia da República”, resumia Luís Marques Guedes.

O deputado do PSD dizia tratar-se de uma “conceção perigosa de pretender amputar a Assembleia da República de poderes constitucionais que nunca são colocados em causa”. E argumentou com outras auditorias (à banca) pedidas anteriormente pela Assembleia da República, nomeadamente uma ao BPN — também através de um projeto de deliberação, mas dirigido ao Tribunal de Contas — e ao Banif, em janeiro — numa resolução chumbada pela esquerda. Os casos não são exatamente iguais, porque a proposta que o PSD e CDS fazem é a de uma deliberação da Assembleia da República e a forma, neste caso, dá para animar, pelo menos, meia hora de discussão. E porquê? Porque uma deliberação diz respeito a atos internos, argumentava o PS. Apoiado pelo BE, onde José Manuel Pureza lhe chamou até um “turbo-procedimento, porque atribui à Assembleia responsabilidade direta para desencadear o processo”.

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O PCP também dava o seu apoio, com António Filipe a afirmar mesmo que o que a direita pretende é “delegar competências que a Assembleia da República não tem numa entidade privada, por concurso público”. Seguiu-se a ironia:

Os senhores estavam tão habituados a uma ofensiva de privatização que, agora que ela foi travada, querem privatizar a Assembleia da República”.

Todos preferiam ter visto o PSD e CDS apresentar um projeto de resolução (que funciona como uma recomendação). Mas se o fizessem, seria provavelmente (também) chumbado.

O socialista Jorge Lacão admitia, ainda assim, semelhanças entre o pedido de auditoria ao Banif que a direita fez em janeiro, mas para dizer que “a questão da competência da Assembleia da República [para contratar uma auditoria externa] só se coloca agora pela primeira vez”. E referiu-se ao do passado como “um precedente eventualmente errado que não pode fazer de letra de lei”.

Os deputados do PS eram os mais insistentes no ponto da falta de competência do Parlamento para “funções típicas da tutela administrativa”. Quando falou no final da discussão, Pedro Delgado Alves havia de recorrer à caricatura para fazer valer o seu ponto: “A Assembleia da República não pode ir verificar se há cassetes piratas à venda na Feira de Carcavelos”. Menos expressivo mas igualmente irritado, Jorge Lacão desafiava: “Como é que dizem que se quer autolimitar os poderes do Parlamento? Expliquem-me onde está o poder?”.

No CDS, Telmo Correia aproveitou a deixa do deputado Jorge Lacão (conhecido pelas longas intervenções parlamentares) para o provocar a propósito da última — a mais exaltada. “Temos de deixar de usar expressões como a da elevação intelectual. Já sabemos que não há aqui ninguém com a sua elevação. Eleva-se intelectualmente de tal forma que deixa de ver a terra. Nós não temos essa capacidade, temos os pés na terra”. E isto para acusar o PS de estar a usar “a chicana política para evitar um exercício de fiscalização política”. Encontrou eco no deputado do PSD Carlos Abreu Amorim, que insistia que “o que se quer aqui é travar auditoria”, ao mesmo tempo que modelava o discurso, afinal a auditoria era “inspetiva” e podia “ser só uma análise documental”.

Acabou travada, com o parecer pedido por Ferro Rodrigues aprovado em dois minutos daquela hora e meia, por — sem surpresas — PS, BE e PCP, contra PSD e CDS. É certo que o presidente da Assembleia da República pode ou não acolhê-lo, mas aí a direita já se mostra com pouca esperança em ver seguir a sua iniciativa.

No debate, Telmo Correia ainda explorou uma frase do parecer do deputado socialista que entendia como uma abertura a ter esta mesma auditoria aprovada pelo PS no âmbito da Comissão de Inquérito Parlamentar (marcada para 5 de julho). “Apenas no quadro de uma Comissão Parlamentar de Inquérito poderia ser discutível (…) a adoção de uma iniciativa fiscalizadora similar”, consta no parecer. Mas Lacão levantou a voz para dizer que não estava lá qualquer abertura socialista.

O texto de oito páginas foi varrido de uma ponta a outra, o seu autor falou no fim, visivelmente irritado com a discussão, e exigindo que não fosse colocada em causa a sua “seriedade política”. Acabou por ouvi-lo, mas só ao cair do pano, com Carlos Abreu Amorim a pedir ao presidente da comissão parlamentar tempo, mesmo antes da votação, “para apenas uma linha“: “Nunca na argumentação de um deputado do PSD se disse que o parecer não era um exercício jurídico sério”.