O futebol também criou os seus chavões. E nem todos são necessariamente verdade. Eis um: a Itália é defensiva até mais não, mas vence resvés Campo de Ourique. E eis outro: a Alemanha, aconteça o que acontecer, e enquanto foram 11 contra 11 sobre o relvado, vence sempre no final — Gary Lineker dixit.
E quando este sábado se defrontarem as duas, Itália e Alemanha, como vai ser? Só uma poderá seguir em frente nos quartos-de-final. A Alemanha, antes do Euro começar, era a favorita a trazer o “caneco” (mais até do que a Espanha, vencedora das últimas duas edições). Afinal, é a campeã em título do Mundial e mantém (com um ou outro upgrade, mais um downgrade chamado Lahm) a base que venceu no Brasil. Mas isso era antes do Euro começar. A Alemanha continua a ser candidata, claro. Passou em primeiro lugar no Grupo C (com os mesmos sete pontos da Polónia, mas melhor goal average) e cilindrou (3-0) a Eslováquia de Hamsik nos “oitavos”.
A Itália, por sua vez, antes do Euro começar, era tudo menos favorita a chegar à final de Paris e vencer. Desde logo, porque Pirlo não foi convocado (está a gozar a “reforma dourada” na MLS), porque Verratti e Marchisio (que poderiam ser “Pirlos”) se lesionaram e porque Balotelli não está para “futebóis” nos últimos tempos. Ah, mas espera lá: essa é a Itália de hoje e de sempre. Uma Itália de quem se diz não valer um tostão furado, mas que depois chega à final e vence os favoritos. Ou melhor, às vezes vence, às vezes não.
Olhemos primeiro para a Itália em Europeus. Em 1968 (com Zoff, Facchetti, Rivera e Mazzola) venceu; no Euro 2000 seria derrotada no prolongamento com um golo (103′) do “italiano” Trezeguet; mas em 2014 nem a prolongamento foi: perdeu 4-0 com a Espanha. Quanto a Mundiais, a Itália venceu em 1934 e 1938 com o Vittorio Pozzo (o “inventor” do catenaccio) no banco. Antes, só se havia realizado um Mundial, o de 1930, que foi vencido pelo Uruguai. A Itália voltaria às finais em 1970, sendo derrotada na final do estádio Azteca pelo Brasil de Pelé. Mas em 1982 venceu mesmo: Paolo Rossi, Tardelli e Altobelli molharam a sopa, Paul Breitner reduziu, e os italianos venceram (3-1) a Alemanha no final. A final de 1994 pode resumir-se ao penálti que Roberto Baggio atirou para “fora” do Rose Bowl, na Califórnia. É pelo menos disso (e do penteado de Baggio) que mais nos recordamos hoje. Mas ainda falta uma final. Aquela em que a Itália venceu a França nos penáltis. Lembra-se? Foi no Olympiastadion de Berlim, a 9 de julho de 2006. Não se lembra? É a da cabeçada de Zidane em Materazzi.
A Itália de Conte: não se é defensivo só porque se utilizam três centrais
No Euro 2016, Antonio Conte montou o “onze” à sua imagem. Quer isto dizer que a tática de italiana (na só as posições que os jogadores ocupam no relvado, mas também as movimentações que fazem) é idêntica à da Juventus que Conte treinou entre 2011 e 2014, e onde venceu três Scudeto e duas supertaças de Itália. Não tem os mesmos “ovos” de Turim (faltam Vidal, Pogba ou Tévez, mas também os italianos Pirlo ou Marchisio — e desses e das suas ausências já falámos), mas tem feito umas omeletes de deixar água na boca em França.
Desde logo, Conte venceu. Ou venceu quase sempre. A Itália começou por derrotar a Bélgica (que é segunda no ranking da FIFA, dez lugares acima dos italianos) a abrir o Euro, venceu depois a Suécia de “Ibra” e só perdeu com a Irlanda a fechar o Grupo E, talvez por estar com a cabeça nos “oitavos” e não naquele jogo. Talvez. A verdade é que, se é essa a razão da derrota contra os irlandeses, nenhum tifosi levará a mal o deslize de Conte. É que chegada aos “oitavos” e à eliminatória com a Espanha, a Itália venceu 2-0 e “vingou” a goleada sofrida na final do Euro 2012, em Kiev. Mas a Itália fez mais do que isso. A tática de Conte engoliu o “tiki-taka” espanhol, não permitiu que a Espanha tivesse a bola, Iniesta mal se viu no Stade de France, e não estivesse David de Gea numa noite “sim”, o 2-0 poderia ter sido um três, quatro, cinco ou seis. A “secos”, pois Buffon só fez uma defesa “à Buffon” perto do fim.
Mas que tática é esta? À partida, dir-se-ia que não é diferente da de Cesare Prandelli, o treinador que foi goleado pela Espanha na tal final de 2012 e que nem conseguiu passar do terceiro lugar (atrás da Costa Rica e do Uruguai) no Grupo D do Mundial 2014. Tal como Prandelli, também Antonio Conte utiliza três centrais. Certo? Errado. Prandelli utilizava três centrais (Barzagli, Bonucci e Chiellini, os três da “Juve” então treinada por Conte), sim, mas Chiellini era mais defesa esquerdo do que central, e no meio-campo Prandelli utilizava um losango com De Rossi, Pirlo, Marhisio e Montolivo — no ataque estavam, sós, Cassano e Balotelli. A tática de Prandelli era defensiva. Até porque os laterais Abate e Chiellini mal subiam no flanco, os médios eram mordiscadores de calcanhares, e depois era bola na frente e fé no Mario [Balotelli]. Conte não é assim. E Conte assume os seus três centrais.
Mas isso não faz da tática dele uma tática defensiva. Antes pelo contrário. Os três, Barzagli, Bonucci e Chiellini, estendem-se a toda a largura da defesa, de uma lateral à outra. Os três esticam a defesa da Itália (são “mestres” a pôr os adversários em fora-de-jogo, avançando no relvado como se uma coreografia fosse) até meio do seu meio-campo defensivo. Com isto, os laterais, De Sciglio à direita e Florenzi (também ele destro) à esquerda, são praticamente extremos, subindo pelo flanco como tal e cruzando (bem) para a área vezes sem conta. O meio-campo está por conta do giallorossi De Rossi, o seis, e de Parolo, um box-to-box da Lazio, que tanto recua até ao lado do primeiro e é trinco, como faz circular a bola em terrenos que são de dez – e tem um remate de média e longa distância que é uma autêntica “bujarda”. O ataque, esse, é a três, com Giaccherini e o ítalo-brasileiro Éder mais laterais, e Graziano Pellè, possante, altíssimo, na área a “cutucar” centrais.
Mas a tática (3-4-3) de Conte não é tão linear assim. E é por isso que a todo-poderosa Espanha se deu mal com ela. É que o tal 3-4-3, com dois laterais que são praticamente médios-interiores, rapidamente (e durante o jogo, dependendo do adversário ou da Itália estar a defender, estar em ataque organizado ou em contra-ataque) se transforma num 4-4-2 ou até num 3-5-1, sabendo sempre os jogadores aquilo que têm que fazer em cada situação. E isso só é possível com muito trabalho na hora de treinar. Muuuuuito trabalho.
Voltando à tática e à transformação desta. Contra a Espanha, muitas vezes, e por forma a anular os seus pontos fortes, o meio-campo (com Busquets, Iniesta, Fàbregas e Silva) e a posse de bola, Conte deu ordem para que o 3-4-3 de transformasse no tal 3-5-1. Nunca abdicou dos três centrais — que se entendem às mil maravilhas –, mas fez recuar Parolo para o lado de De Rossi e assim matou dois coelhos de uma cajadada só: Fàbregas e Silva. Depois, Éder, que atua sobretudo pela direita ou nas costas de Pellè, recuou para a posição dez. Assim, não só Éder impedia (marcando-o homem a homem) que Busquets construísse jogo desde trás, como estava sempre pronto a sair em contra-ataque pelo centro do meio-campo, deixando o espanhol a léguas de distância com a sua velocidade e movimentações “chatas”. Pellè, esse, continuaria próximo da área, ainda e sempre posicional, inteligente a dar-se ao fora-de-jogo e a fugir dele no último instante, forte nos duelos aéreos, o que impedia que Piqué e Sérgio Ramos o metessem “no bolso”. Quem falta? Giaccherini, o “bandido” (sem ofensa) da Itália. É baixinho, veloz como um raio, e uma carga de trabalhos para marcar defensivamente. Que o digam Juanfran e Alba, os laterais espanhóis, que ora o apanhavam à esquerda, ora à direita, e “apanhavam” sempre de frente, pois Giaccherini tem por hábito avançar para o ataque vindo de trás, com a bola coladinha ao pé destro, nunca se oferecendo à marcação enquanto espera um passe.
Mas Giaccherini não é só importante no ataque. É sobretudo importante a anular os ataques contrários. Um exemplo: Juanfran e Alba, voltando a eles, são laterais ofensivos nos seus clubes e na Roja, mas contra a Itália mal subiram ao ataque ou cruzaram para a área. Porquê? Porque Giaccherini, a deambular de flanco para flanco, é o primeiro apoio para De Sciglio e Florenzi na hora de defender. Se um deles é ultrapassado, Giaccherini faz a dobra. Ou vice-versa. Depois, e sendo também De Sciglio e Florenzi ofensivos, Giaccherini é ofensivo com eles, criando sempre uma linha de passe mais ao centro, ou mesmo na ala, possibilitando assim o chamado toma lá, dá cá. Ou seja, um passa, o outro recebe o passe, tudo ao primeiro toque e rápido, criando-se, assim, espaço para que quem o recebe, cruze. Ou remate. Ou o que for. Mas é com os “Giaccherinis” que se baralham as marcações contrárias. Sobretudo “marcações” como as espanholas, onde os laterais (não tendo um médio-ala à sua frente) estão quase sempre sós na hora de defender.
Mais Kovac do que Herrera
Não, Conte não é um treinador defensivo. Dizer-se da Itália de Conte que é a continuação do catenaccio de Vittorio Pozzo (o treinador que venceu duas vezes o Mundial na década de 1930) ou de Helenio Herrera (que derrotou, com o Inter, o Benfica de Eusébio na Taça dos Campeões Europeus de 1965) é mentira. O tal “chavão” de que falámos no início e que é só isso: um chavão.
O catenaccio, logo à partida, não utiliza três centrais; utiliza quatro – sendo que nenhum deles é um lateral “puro” ou ofensivo tão pouco –, recuando um deles para trás dos restantes: é o libero. No Inter de Herrera o libero (que “secou” Eusébio em 65) era Picchi; na Itália de Pozzo era Pietro Rava, de quem o próprio treinador disse ser “il più potente del mondo” nessa posição. E isso dispensa traduções. À frente da defesa, estavam sempre (ou quase sempre) três médios, posicionais, de marcação mais individual do que à zona. Como explicar melhor, olhando ao presente? Assim: está a ver o Daniele De Rossi? Saem três para a mesa do centro, se faz favor. À frente deles, alguém haveria de resolver o jogo. No Inter de 1965 “resolviam” Luis Suárez, Sandro Mazzola e o brasileiro Jair.
Conta-nos a História (a do futebol, claro) que o catenaccio “morreu” em Roterdão, a 31 Maio 1972. Talvez as notícias sobre a sua morte tenham sido, e citando Mark Twain, “manifestamente exageradas”; Arrigo Sacchi e Giovanni Trapattoni, Fabio Capello ou Marcello Lippi, todos italianos, todos papa-taças, nunca foram propriamente “ofensivos”. Mas a verdade é que nessa noite, a de Roterdão, o Ajax venceu (2-0) o Inter. E o treinador dos holandeses, Stefan Kovács, “inventou” aquela que seria a antítese do futebol defensivo dos italianos: chamou-se-lhe “futebol total”. Johan Cruijff, que em Roterdão fez os dois golos do jogo, seria em campo (com Kovac no Ajax ou Rinus Michels na “Laranja Mecânica”) e como treinador (na Dream Team do Barça) o maior expoente desse futebol. E transmiti-lo-ia a um seu pupilo. Um tal de Pep. Pep Guardiola.
Voltando a Conte. Nele não há ponta de catenaccio por onde pegar. Aliás, até está mais próximo do “futebol total”. Se isso chega para vencer o Euro? Depois do Itália-Alemanha voltamos a falar, pode ser?