Nem Harry Potter conseguia aplicar um feitiço capaz de enfiar 15 mil pessoas dentro da imponente, mas pequena, Livraria Lello. Foi esta a multidão que um agente da PSP estima que tenha estado, este sábado à noite, em frente à livraria portuense que inspirou J.K. Rowling. Às 00h00, as portas abriram-se para ser entregue o tão aguardado exemplar de Harry Potter and the Cursed Child à primeira pessoa da fila, que já esperava há 37 horas e dormiu ao relento.
Não seriam todos fãs, é certo. Às 22h00, quando um ator da companhia Acaro saiu de dentro da livraria na pele do personagem Albus Dumbledore e dirigiu as primeiras palavras à multidão, uma adolescente que estava na primeira fila, agarrada à grade, entrou em delírio. A mãe olhava para as pessoas à volta em busca de adultos que também não compreendessem o porquê de tanta gritaria perante a aparição de um velhinho de barba branca que não é o Pai Natal carregado de presentes, nem porque é que a miúda estava a reagir de forma tão entusiasta quando eram ditas palavras estranhas como “Gryffindor”.
A seguir apareceu Trelawney, a professora de adivinhação de dotes duvidosos para a qual Harry Potter nunca teve grande paciência. De bola de cristal na mão, disse ter tido uma visão: que aquela seria uma noite mágica. Não sabemos se terá convencido aquela mãe, que teve de ir para a grade três horas antes para conseguir um bom lugar para a filha, e a quem restava agora segurar numa caixa de pizza e aguentar até à meia-noite, altura em que as portas da Lello se iam abrir para serem vendidos os primeiros livros de Harry Potter and the Cursed Child. Tiago, 10 anos, também estava na grade há duas horas e vibrava com os personagens e com a coruja-das-neves que a organização trouxe para o evento, a fazer lembrar Hedwig, a coruja de Potter. Só estava ali para se divertir porque não sabe inglês. “Vou ter de esperar que saia a versão portuguesa”, disse, com o brilho nos olhos e a excitação de quem tinha ali ao lado alguns dos seus heróis.
As crianças trouxeram os pais, os adolescentes nunca vão sozinhos para lado nenhum, os adultos que se mantêm fieis à história não queriam estar desacompanhados no evento e alguns homens e mulheres conseguiram arrastar a sua cara-metade para estarem ao seu lado numa noite que foi, de facto, especial. Com o lançamento mundial desta obra, um guião de uma peça de teatro de Jack Thorne, baseado numa história original criada por ele, pelo argumentista inglês John Tiffany e pela própria J.K. Rowling, abre-se aos fãs a porta de reentrada num mundo que há precisamente nove anos tinha sido fechado para sempre. Pelo menos era o que se pensava.
Harry Potter e os Talismãs da Morte, o sétimo e último livro da saga, foi lançado em julho de 2007. Nas últimas páginas lemos que Harry Potter já tem 37 anos e é casado com Ginny Weasley. Ron e Hermione estão com eles na famosa Plataforma 9¾, na Estação de King’s Cross, porque os filhos de ambos os casais estão a entrar no comboio em direção a Hogwarts. Para Albus Severus, o filho mais novo de Harry, e para Rosie, filha de Ron e de Hermione, será o primeiro ano na escola de feitiçaria. Tal como tinha sido para eles há muito, muito tempo.
Foi também há muito tempo que Paula Franco folheou o primeiro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, cuja edição portuguesa (Presença) é de 1999. Hoje tem 40 anos e não quis deixar de vir assistir ao lançamento. “Sou da geração que começou a ler bem antes de existirem os filmes”, disse ao Observador, ao mesmo tempo que dois atores feiticeiros desciam do telhado da Lello, empunhando varinhas e simulando um combate. Paula devorou os sete volumes, mais o pequeno O Quidditch Através dos Tempos, que não faz parte da coleção oficial. Está ali para ver de perto a continuação do último momento, publicado este domingo, 31 de julho, por ser o dia de aniversário do personagem Harry Potter (e o de J.K. Rowling também). “Eu cresci com isto. O novo livro é como uma esperança de continuar a luta, sem repetir histórias antigas, mas sim continuar em frente.”
Paula Franco não pôde pôr as mãos num dos cerca de seis mil livros que a Livraria Lello tinha preparados para entregar a partir da meia-noite. Para isso tinha de ter feito a pré-compra no dia anterior. No sábado, só quem tinha o talão do pagamento dos 25,50€ que custa cada exemplar é que podia entrar naquela que muitos consideram uma das mais belas livraria do mundo, tantas vezes frequentada por J.K. Rowling quando morou no Porto, no início dos anos 1990. As cerca de três mil pessoas que aguardavam para trocar um pedaço de papel por Harry Potter and the Cursed Child passava o edifício da Reitoria da Universidade do Porto e o trânsito esteve condicionado. Mas calma, que há quase mais três mil a partir deste domingo, à disposição de quem os quiser levar para casa.
Patrícia Jones não tem dotes mágicos e, se quis ser a primeira da fila para garantir que o exemplar número 1 era dela, viajou de Lisboa e plantou-se em frente à Lello desde sexta-feira à hora de almoço. Quando a animação deste sábado começou, a jovem de 17 anos já ali estava há 35 horas, quase sem ter dormido nada na noite anterior, que passou ao relento com outras pessoas na mesma situação. “A ideia de ser a primeira a receber o livro era fantástica, também ouvi falar de um prémio para a primeira pessoa e decidi tentar, mas não pensei que conseguisse”, explicou.
Patrícia vestia um manto negro e um traje com gravata vermelha e dourada, as cores de Gryffindor, assim como tantos outros jovens que pertencem à geração que entrou no mundo de Harry Potter através do cinema. Algumas crianças nasceram depois de Harry Potter e os Talismãs da Morte ter saído para as lojas. Depois de ter visto os filmes, Patrícia devorou os livros todos. Sabe que este é diferente, mas que importa isso quando estão lá as personagens que adora? Também não importa que, nas últimas 35 horas, se tenha sentido “um animal de zoo porque as pessoas param, apontam, riem, fazem comentários desagradáveis“, contou.
A Lello foi um dos espaços que se associou ao lançamento mundial da nova história. “Somos a livraria que mais exemplares tem em toda a Europa”, afirmou Maria Inês Castanheira, do Bairro dos Livros, responsável pela organização da festa. A ideia era levar os atores, a coruja e as poções para perto dos fãs que aguardavam há horas na fila, mas a dimensão que o evento foi ganhando tornou isso impraticável. Quem estava afastado das grades que delimitavam o espaço onde atores, jornalistas e organização se deslocavam, não conseguia ver nada para além dos dois feiticeiros que desceram três vezes a fachada da Lello — que acaba de ser renovada.
Mais à frente havia um pequeno palco onde Dumbledore fez algumas poções já por volta das 23h00, mas a animação passou muito pela interação cara a cara com quem conseguiu um lugar na grade. O que causou o desespero de alguns pais e a tristeza dos fãs. “Disseram que ia haver animação às 22h00 e não houve porra nenhuma”, queixou-se uma mãe a um dos 20 voluntários que ajudavam a manter a ordem. A multidão era tal que era impossível chegar perto das atividades. E as colunas instaladas para disseminar o som não foram suficientes.
Pouco antes da meia-noite, Patrícia Jones foi finalmente convidada a entrar na Lello para receber o tão aguardado livro. Antes, a organização deu-lhe uma garrafa de água e uma bola de Berlim porque, àquela hora, o cansaço de 37 horas de espera já era visível. Subiu finalmente à escada que serviu de inspiração a J.K. Rowling para um dos cenários descritos nas obras, agarrou no exemplar e ficou a olhar para ele durante largos segundos, chorando e rindo ao mesmo tempo. “Não vou conseguir ler esta noite“, confessou. “Tenho de dormir primeiro, não aguento. Mas vou tentar ler tudo amanhã.”
A partir daí formou-se uma autêntica linha de montagem para que os volumes fossem entregues aos fãs o mais rapidamente possível. Quem entrava tinha de circular junto aos extremos do espaço e não podia parar nem para tirar uma selfie, ou uma foto às escadas. Afinal, havia três mil livros pré-comprados que tinham de ser levantados. Depois da meia-noite, quem sofreu na fila saía da Lello a sorrir, alguns a gritar — “Cumpri o sonho da minha vida!“.
Era um cenário de contrastes. No exterior, as pessoas começaram a dispersar quando perceberam que não iriam mesmo poder entrar na livraria. As outras trocavam impressões com os amigos e a família. “Olha, no meio dos capítulos tem uma pena! Isto é muito lindo!”, diziam uma à outra Mariana e Inês, 13 anos e o manto negro de feiticeiro vestido. Mesmo com o livro escrito em inglês, nada as impedirá de voltar a entrar numa história que conquistou milhões de pessoas de diferentes idades um pouco por todo o mundo. Um mundo que tinha ficado em suspenso há nove anos. E que voltará a fechar-se após mais 352 páginas.