Quando Gene Roddenberry criou, em 1966, para a estação NBC, a série de televisão “Star Trek” (“O Caminho das Estrelas”, em Portugal), tinha esperança que durasse pelo menos cinco temporadas. Acabou no final da terceira, mas continuou a ser repetida por vários canais, originando um dos maiores fenómenos da história da televisão, e que iria muito para além dela. Roddenberry morreu em 1991, após ter conseguido transferir a série para o cinema em 1979, com “O Caminho das Estrelas”, de Robert Wise, em boa parte graças ao sucesso de “Guerra das Estrelas”, que deixou o mercado ávido de filmes de ficção científica; concebido uma versão em desenhos animados para televisão nos anos 70 (“The Animated Series”); e presidido à primeira nova série televisiva que sucedeu à original, “The Next Generation”, em 1987.
[Recorde a série original]
Roddenberry era também um hábil homem de negócios, e não teria ficado surpreendido com a comemoração, este ano, do meio século de vida da série-mãe. Nem com a popularidade, durabilidade, vitalidade e poder comercial da marca “Star Trek”, que é também um culto de dimensão mundial, expressas em 13 filmes de longa-metragem desde 1979, seis séries de televisão desde a original, estreada há 50 anos (vem uma sétima a caminho, “Discovery”, com estreia em 2017), e “merchandising” que abrange livros, “comics”, figuras de ação, brinquedos ou jogos de tabuleiro e de vídeo. A isto juntam-se as reuniões e convenções de fãs (os “Trekkies”), obras sobre variados aspetos do universo “Star Trek”, nomeadamente o tecnológico e o científico, estudos universitários sócio-políticos, culturais ou filosóficos, e, consagração suprema, citações, glosas e referências constantes noutra série de enorme culto, “A Teoria do Big Bang”.
[Veja a convenção dos 50 anos da série]
O novo filme, “Star Trek: Além do Universo”, estreia-se mesmo a tempo dos festejos dos 50 anos. É a 13ª longa-metragem, e a terceira da nova incarnação cinematográfica. A ação passa-se numa linha temporal alternativa, a “Kelvin timeline”, na qual as personagens da série original são ainda jovens, mas já formam a tripulação da ‘Enterprise’. J.J. Abrams ainda está ligado à produção, mas passou a realização para Justin Lin, o homem que deu novo fôlego à série de filmes “Velocidade Furiosa”. De notar que aos habituais financiadores das fitas “Star Trek” juntam-se, pela primeira vez, os chineses da Alibaba e da Hua Hua. A primeira destas companhias já estava associada aos estúdios Paramount, produtores dos “Star Trek”, em títulos como “Transformers” ou “Missão: Impossível”, revelando a crescente importância e influência do investimento e do mercado chinês em Hollywood.
[Veja o “trailer” de “Star Trek: Além do Universo”]
Co-escrito (com Doug Jung) pelo ator inglês Simon Pegg, que também interpreta o engenheiro Scott e é um grande fã da série, “Star Trek: Além do Universo” esforça-se particularmente para manter vivo o espírito da série original concebida por Gene Roddenberry, com a sua visão otimista de um futuro onde se estabeleceu formalmente uma fraternidade dos povos das galáxias, e a sua ideologia multirracial, multicultural e de convívio interplanetário, expressa na diversidade dos membros da “Enterprise”. Bem como em preservar a familiaridade muito própria do universo “Star Trek”, nesta altura em que a febre alta das continuações que atinge o cinema americano ameaça as “franchises” de descaracterização rápida ou de cair com facilidade na auto-paródia involuntária.
[Veja a entrevista com Simon Pegg]
São bem identificáveis neste novo filme os laços temáticos, narrativos e ideológicos com a série original, e a vontade de conservar uma fidelidade ao mundo ficcional criado por Roddenberry que transcende tempos, gerações, mentalidades e mudanças tecnológicas. Aliás, “Star Trek: Além do Universo” deve ser, dos últimos filmes da série, aquele que mais se esforça não só por cultivar a nova geração de “Trekkies”, como também por agradar aos fãs mais antigos. Ver a abertura, com a missão de paz do comandante Kirk junto de extraterrestres com maus fígados, e que podia bem pertencer a um episódio da série-mãe; a estrutura da história, que atira as personagens para um planeta desconhecido, onde elas têm de recorrer às suas capacidades para se desenvencilhar; ou o vilão, Krall (Idris Elba), que é mais do que aquilo que aparenta ser, e revela ter antecedentes compreensíveis, embora inaceitáveis, para agir como age.
[Veja a entrevista com Chris Pine e Zachary Quinto]
Apesar de tudo isto, e de pormenores como a feérica visualização de Yorktown, a cidade-estação espacial, ou as naves como pássaros de aço negro às ordens do vilão Kraal, e da maior parte dos atores se terem “colado” bem às personagens na sua sugestão daqueles que os interpretaram na série de televisão e na primeira leva de filmes, nomeadamente o Kirk de Chris Pine, o Spock de Zachary Quinto ou o citado Scotty de Simon Pegg (recorde-se que Anton Yelchin, que personifica Chekov, morreu num absurdo acidente com o seu automóvel após a rodagem do filme) , “Star Trek: Além do Universo” está inevitavelmente condenado à formatação estereotipada, ao gigantismo codificado e à repetitiva, cansativa e bombástica espectacularidade digital própria da fábrica de superproduções do cinema americano.
[Veja a entrevista com o realizador Justin Lin]
Ao contrário do lema da série, esta fita de Justin Lin não vai “arrojadamente onde ninguém foi antes”, nem nos leva para lá de qualquer fronteira estabelecida. “Star Trek: Além do Universo” limita-se, tal como os seus antecessores, a circular por território conhecido. Mesmo que o faça competentemente e sem atraiçoar as suas origens.