Fizeram muito bem o director executivo e o editor de cultura ao publicarem a “Resposta” de Arnaldo Saraiva à crítica que eu havia feito sobre o seu folheto Anedotas do Nemésio. Eu próprio escrevera ao autor, pouco depois de o seu email me ter sido reencaminhado, desafiando-o a publicá-la onde entendesse, para que os leitores do seu livrinho que também leram o que eu escrevi sobre ele pudessem julgar por eles mesmos. Não sendo comum jornais publicarem respostas a críticas de livros ou outras realizações culturais, a divulgação do escrito de Saraiva tem a considerável vantagem de vir mostrar a pobreza e os danos causados a uma polémica quando a fulanização é elevada a argumento principal (pobre argumento…). Mais ainda quando, como sucede, os seus protagonistas não se conhecem de lado nenhum.
Arnaldo Saraiva reagiu onze dias depois do meu texto ter sido publicado, dando a entender que não é leitor habitual do Observador nem teve ninguém que ao longo de uma semana e meia — e já depois de o meu escrito ter sido partilhado na blogoesfera — o tivesse avisado de nada. Ora isso não é simplesmente credível, mas serve a Saraiva para tentar relativizar a crítica feita, o impacto que possa ter tido e o jornal que a publicou. Num dado momento, entendeu ele que precisava defender-se, e logo nas primeiras linhas deixou claro, e de maneira assaz brutal, que não admite ser contestado, desferindo insultos como pontapés, repetindo-os ainda no final — por desespero ou fúria? —, depois de fazer saber a Miguel Pinheiro lhe “terem sido contadas duas ou três anedotas” a meu respeito, “por sinal com muito pouca piada”. Muito fino…
Não se refere uma única vez aos três pilares centrais da minha argumentação, que me levou a rejeitar o interesse e até mesmo a dignidade do seu folheto: 1) que o legado intelectual e humano de Nemésio está, quase quarenta anos depois da sua morte, por reunir e avaliar, com a publicação de dispersos e avulsos a que ninguém deita mão; 2) que ele sofreu um duplo estigma politizado, antes e depois de Abril de 1974, que persiste de forma intermitente e sem aparente incómodo público; e 3) que esta recolha de anedotas “não tem nada de inocente”.
E não tem mesmo! Uma dessas “anedotas” refere-se à chamada crise académica de 1962: Nemésio e Saraiva coincidem no mesmo autocarro e conversam sobre “as novidades”, um episódio que lhe serve apenas para recordar que o professor preferiu passar ao largo dos acontecimentos políticos do momento. Outra alinha-se claramente com a colagem de Nemésio ao campo “contra-revolucionário” de 1975 (na verdade, democrático, anti-totalitário — e que enorme diferença), aproveitando o pretexto dado por um trocadilho feito sobre o apelido dum jornalista de centro-direita.
Apontei insuficiências ao seu trabalho de colecta de fait-divers acumulado ao longo de décadas, como indicativas dum propósito maligno, dum ajuste de contas pessoal que gente de certo tipo não deixa de fazer enquanto pode, e no fundo, até, dum trabalho muito descuidado e mal feito. E reafirmo: como deixou de parte o que David Mourão-Ferreira — reconhecido como o maior amigo de Vitorino Nemésio — lhe poderia ter contado? Como se faz um inquérito deste tipo passando ao largo da fonte principal, dizendo depois, com displicência, que outros “podem acrescentá-lo”? Posto doutra maneira: que razões existem para tal omissão?; ou, melhor e mais ainda: que diria Mourão-Ferreira, hoje, deste folheto de Saraiva? E Vasco Graça Moura? E Maria de Lourdes Belchior?
E será que os seus “informantes” ainda vivos se reconhecem cúmplices desta ignomínia? Não me parece. Um deles telefonou-me, louvando a minha intervenção, escandalizado e irritado com Arnaldo Saraiva.
Não se pretende qualquer “sublimação essencialista” (sic) de Vitorino Nemésio, mas a invulgaridade deste escritor precisa ainda de ser bem recordada, estimada e dignificada, e não será com folhetos jocosos e apressados como este que lá se chegará.
Quando escrevi que Saraiva “sentiu necessidade de se justificar”, escudando-se numa breve teoria da anedota como género literário, creio ter ido ao fundo da questão. Não se lhe conhece, ao fim duma longa carreira na universidade, empenho específico na valorização da anedota escrita, que subitamente apareceu a propósito dum único autor, Nemésio, quando afinal haveria de ser demonstrada e exemplificada — até por requisito académico — através duma galeria deles, quanto possível farta e variada no tempo e espaço; e lembro-me de imediato de dois: Fernando Pessoa, de quem Saraiva se ocupou nos anos 1980; e Eugénio de Andrade, com o qual aliás privou durante muito mais tempo do que com Nemésio. (E escuso de sugerir, ao “bem-humorado” (sic) replicante, um anedotário específico acerca da trapalhada duma fundação…)
Depois, não desconhecerá por certo todo o malefício que uma “hagiografia às avessas”, como esta, pode causar à presença canónica dum autor. É quase exemplarmente irónico que o seu folheto tenha saído enquanto decorria um congresso sobre Bocage todo dedicado a desembaraçá-lo de estereótipos redutores. Um anedotário do Nemésio não corre o risco de lhe impor idêntico infortúnio? Quererá Saraiva que Vitorino seja lembrado como paradigma — e cito da “resposta” — do “valor cultural, crítico e até estético da anedota”? Não será isso escandalosamente pouco?!…
Admito que alguns fait-divers (e insisto na designação) tenham corrido entre amigos e discípulos particularmente saudosos da presença desse grande homem, e que, por idêntico motivo, os filhos tenham recordado à imprensa pequenas histórias domésticas, mas nada disso — que é coisa tão comum, partilhada mas íntima — tem substância suficiente para dela se fazer um folheto, a menos que, à força de coleccionar literatura de cordel, Saraiva tenha perdido de todo a noção de que o mundo não pode ser contado com o estilo, o modo e a qualidade dela.
E insisto: Arnaldo Saraiva não dedicou a Nemésio qualquer atenção crítica de relevo. Passei uma tarde na Biblioteca Nacional a confirmá-lo. Duas separatas (de colóquios em que participou, 1999 e 2009) são fraquíssimo, irrelevante e aliás muito tardio módico de abordagem crítica, para quem escreve desde 1961. Aulas, que referiu, obedecem a programas pré-estabelecidos, e de acordo com repositórios académicos ao longo de todo o seu magistério Arnaldo Saraiva não orientou uma única tese sobre Vitorino Nemésio — uma única… desde 1968! Na “extensa fortuna crítica” (sic) nemesiana, de resto, Saraiva não é tido nem achado em dezenas e dezenas de ensaios e bibliografias passivas. Nas 854 pp. de Vitorino Nemésio 20 Anos Depois, actas dum colóquio internacional, em que participou — e de que eu fui o editor voluntarioso, feliz, que não esperou por ninguém para se interessar pelo evento e pela consequente e rápida publicação —, o seu nome não é referido uma só vez. O mesmo sucede num livro de 2007 dedicado a Nemésio e os intelectuais portugueses no Brasil. Num espesso volume de homenagem que lhe foi dedicado em 2011 (e aí está, afinal, a petulância que no § 13 diz não possuir), em que às pp. 486-557 vários autores abordam com minúcia a obra crítica de Saraiva, Nemésio nunca é mencionado, como nenhum dos ensaios “em seu louvor”, nas centenas de páginas precedentes, o aproxima, um mínimo que seja, do autor do inesquecível Festa Redonda: décimas e cantigas de terreiro oferecidas ao Povo da Ilha Terceira.
A irrelevância de Arnaldo Saraiva para a recepção crítica de Vitorino Nemésio é, pois, absoluta e irrefutável. Por mais “pontapés” que dê, ou pretenda dar, não passa disso.
E quando afirmei que ele desconhece até a bibliografia de mão daqueles que mais consistentemente acompanham o açoriano ilustre, para mostrar que a sua recolha de fait-divers ou anedotas foi inquinada por um propósito maligno, estava a pensar em três casos graciosos que manifestamente faltam à sua antologia: 1) o episódio, contado por Armando Côrtes-Rodrigues a José de Almeida Pavão (1919-2003; outro “informante” em falta) e por este relatado em Recordar Nemésio (1982, p. 12), pelo qual, regressado aos Açores após longa ausência, ele visitou o monumento a Antero de Quental em Ponta Delgada e “tomando um punhado de terra, sorveu-lhe a fragância do húmus e deixou rolar sobre ele duas lágrimas”; 2) a conferência que deu em Belo Horizonte, durante a sua primeira ida ao Brasil, em 1952, em que um mineiro entrado para ouvir palestra sua sobre Alexandre Herculano sentiu, depois, atónito, ter saído de uma aula de dialectologia açoriana (depoimento nas Actas de 1999, em que, repito, Saraiva colaborou…); e 3) o pelo menos duas vezes facsímilado poema “O gato solteiro” de Carlos Drummond de Andrade — note-se bem: o autor-tema da sua tese orientada por Vitorino Nemésio —, que amorosamente este reescreveu à margem e nas entrelinhas como “O cão casado”…
§ 13: Saraiva trabalhou durante dois anos na biblioteca do departamento de literatura brasileira enquanto estudava, mas sem alimentar expectativa de se tornar, depois da defesa da tese, um ou o assistente de Nemésio, ou simplesmente ingressar no quadro da faculdade de Lisboa, cujos créditos e prestígio, à época, eram muito superiores aos da sua correspondente no Porto? Foi exactamente assim? Há controvérsia…
Também importa regressar ao caso Jorge de Sena (§ 12), simplesmente para dizer que é fácil colocar na boca de outros algo que queremos dizer. Por exemplo, a enunciação “Fulano é sinistro” pode ser atribuída a um terceiro, enquanto acto contínuo afirmamos “Não, ele nasceu na Covilhã”. Lançamos a primeira, recolhendo o crédito da segunda. Um dia vou pedir a alguém que eu cá sei que me diga como tudo isso aconteceu no Expresso de Março de 1982, e que tanta celeuma então levantou, indignando Mécia de Sena e quem dela sempre esteve e está próximo. Não será seguramente o caso de Arnaldo Saraiva, pois não é verdade?…