“Brilhante”. “Príncipe da Medicina”. “Fascinado pelo mistério da vida”. “Grande intelectual”. “Grande português”. “Um dos melhores”. Assim era João Lobo Antunes, nas palavras de quem privou com ele. O neurocirurgião morreu, esta quinta-feira, aos 72 anos, vítima de cancro. Uma doença que há mais de um ano o tinha obrigado a afastar-se do bloco operatório. Era, desde 2015, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).
Nascido a 4 de junho de 1944, no seio de uma família da alta burguesia, desde muito cedo que João Lobo Antunes manifestou um gosto especial pela leitura, pela escrita e pelo estudo. Sentia-se mesmo um “Frade Cartuxo”, nos anos em que mais estudava. “Começava às nove, com o sino da igreja, acabava à uma com o sino da igreja, recomeçava às três com as três badaladas, acabava às oito badaladas, recomeçava às nove e acabava às 23h00. Dia, após dia, após dia. Sábado e domingo descansava. Era muito obsessivo”, recordou, em entrevista ao Jornal de Letras. Chegou a ficar em casa a estudar enquanto a mãe e os irmãos iam de férias.
E foi desta dedicação que colheu frutos. Aluno exemplar do Liceu Camões, em Lisboa, acabaria a licenciatura em Medicina pela Universidade de Lisboa, em 1971, com uma média de 19,47. Quando terminou o curso exerceu clínica no Hospital Júlio de Matos, mas, ao fim de três anos, rumou a Nova Iorque, onde trabalhou no Instituto de Neurologia da Universidade de Columbia, entre 1971 e 1984. Foi também lá que se doutorou.
Em 2006, em entrevista ao Público, disse que, ao contrário de muitos, não seguiu Medicina por querer salvar vidas. Foi para Medicina porque era o que melhor se adaptava ao seu “tipo intelectual e temperamental”. Afirmou, sem problemas, que foi a Medicina que o fez médico. “A Medicina assim o quis.” E na última aula que deu — intitulada “Uma vida examinada” –, em 2014, voltou a falar, em jeito de graça, dos “genes da Medicina”, mostrando a árvore da sua família e concluindo que Medicina era a “profissão dominante de penetrância variável”.
Da falta de jeito com as mãos, ao prazer de operar
Segundo de seis filhos, João Lobo Antunes nasceu numa família de médicos. Em entrevista a Maria Leonor Nunes e ao Jornal de Letras, em outubro de 2015, recordou que foi o pai, neurologista, quem mais o encaminhou na profissão. “Não há dúvida que teve importância, o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para Medicina, três para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa.”
Mas João Lobo Antunes esteve para fazer marcha atrás. “A certa altura pensei em ir para cardiologia porque achava a mais a matemática das especialidades. Por outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência terapêutica da neurologia. Isto há 50 anos.”
Outra razão que quase o levou a afastar-se da neurocirurgia foram as mãos. Isso mesmo. Lobo Antunes confessou ao Jornal de Letras ser pouco “dotado” num ofício que exige “elegância”. “Desenhava com algum talento [na infância], modelava, esculpia, mas não era dotado de mãos habilidosas. Era, portanto, um enorme desafio ir para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as mãos para operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e gestual, estou mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da chave de fendas. (…) A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a guitarra e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia e um conceito estético“, descreveu.
Dedicou a sua carreira principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise. O cérebro era para ele “sagrado” e, como tal, devia ser tocado “com rigor e especial delicadeza”. Nos Estados Unidos aprendeu a doutrina de tirar um tumor sem tocar no cérebro, o que nem sempre era possível. Lobo Antunes foi o primeiro médico a implantar o olho eletrónico num cego, em 1983. Depois dele, seguiram-se 15 operações do género, permitindo aos doentes ver algumas formas e distinguir certas cores.
“Foi uma das figuras que mais marcou a saúde em Portugal, a ciência e a investigação biomédica”, realçou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, após a notícia da morte do médico, com quem trabalhou no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Foi um verdadeiro visionário. Um dos maiores do nosso tempo.”
No outro lado do Atlântico, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou Lobo Antunes como “uma figura ímpar” e “um grande académico, um grande intelectual, com uma cultura vastíssima”. Em visita de Estado a Cuba, o chefe de Estado português lamentou a morte do “amigo”, “uma figura cimeira no domínio da saúde e da ética das ciências da vida”, “respeitado por toda a sociedade portuguesa”.
Por cá, o ex-presidente da República, Cavaco Silva, revelou ter ficado “profundamente consternado”, destacando a “amizade e estima muito especiais” que os ligava. O primeiro-ministro António Costa reagiu à morte do médico, falando numa “grande perda para a ciência em Portugal”. Assunção Cristas, em nome do CDS, apresentou “à sua família e à Universidade de Lisboa os profundos sentimentos, na convicção de que nunca morre quem deixa uma obra e uma vida tão fecundas”. E o PSD, em comunicado, frisou o “legado” deixado por “um dos mais brilhantes médicos e docentes universitários portugueses”.
Quem também decidiu deixar uma palavra nesta hora foi Salvador de Mello, presidente da José de Mello Saúde, lastimando “profundamente a morte de um dos nossos maiores, tanto em termos profissionais como pessoais”. “João Lobo Antunes faz parte da alma da CUF [o médico trabalhou no Hospital CUF Infante Santo desde o início da sua carreira, em 1968], como reputado neurocirurgião e cientista.”
Lobo Antunes, o “elegante”
O patologista Sobrinho Simões dirigiu-se ao neurocirurgião como “um exemplo”; a ex-ministra da Saúde, Maria de Belém, “completamente devastada” falou do “amigo fabuloso” como um “Príncipe da Medicina e da cultura portuguesa” e o ex-ministro Correia de Campos afirmou que o “inovador” Lobo Antunes “podia ser tudo aquilo que quisesse”.
Já o diretor geral de Saúde, Francisco George, falou em “personalidade absolutamente ímpar, o melhor da nossa geração”; o bastonário da Ordem dos Médicos descreveu-o como “alguém que desbravou caminhos na Medicina, mas também na ética e na literatura”; e Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa, destacou o “legado impressionante” do médico e a “elegância, no trato, na maneira de estar com as pessoas, na maneira de se relacionar, mas ao mesmo tempo, uma enorme firmeza”.
Sampaio da Nóvoa não foi, aliás, o único a falar na elegância de Lobo Antunes. Quem melhor o conhecia não o recorda só como profissional exemplar. Enaltece nele outros traços de personalidade. É o caso de Cíntia Águas, secretária executiva do CNECV, com quem trabalhava há uma década: “Era um homem de uma elevação intelectual extraordinária, um homem conhecedor, um Príncipe da Medicina e das letras. Mas destaco a elegância de pensamento e no tratamento das pessoas e o sentido de humor finíssimo do professor”. “Era curiosíssimo sobre os outros, um juiz de caráteres”.
E era mais do que isso. Era uma pessoa preocupada com a dignidade e a ética. A esse propósito, Salvador de Mello recordou-o “naquela que terá sido a sua última entrevista: ‘O mais importante que tentei ensinar foi que a medicina não pode perder a sua face humana.'”
Lobo Antunes nunca esqueceu os seus pacientes e as histórias deles. E nunca abandonou a questão da ética, tendo chegado a presidente do CNECV em 2015. Por várias vezes falou publicamente sobre a dignidade da vida humana e debateu alguns dos dilemas do final da vida e da morte. Quando a polémica eutanásia começou a ser falada, ele recusou a ideia de um referendo e preferiu sempre focar-se na importância dos cuidados paliativos, antes de se pronunciar sobre a eutanásia.
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Mas João Lobo Antunes não era só médico. Foi professor catedrático na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa até junho de 2014, altura em que se jubilou. A despedida ficou marcada por uma última aula que era para se chamar “Última lição”, mas que o mesmo intitulou de “Uma vida examinada”. O auditório Egas Moniz, da Faculdade de Medicina, encheu-se para ouvir o professor despedir-se e o discurso de Lobo Antunes foi aplaudido de pé durante minutos, por uma plateia de luxo. Foi o adeus a 30 anos de ensino e também a 30 anos de Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do Hospital de Santa Maria, onde era diretor do serviço de neurocirurgia.
Mas não foi o adeus à profissão.”Enquanto as mãos me obedecerem e o cérebro souber mandar eu vou continuar”, prometeu Lobo Antunes, em jeito de remate. E continuou, até que o corpo deixou de lhe obedecer, por conta de um melanoma que o atormentava há anos e que o obrigou a afastar-se dos blocos no ano passado.
Outra das paixões que o acompanhou toda a vida foi a da escrita. Em 2015, na mesma entrevista ao Jornal de Letras, revelou que assumiu “sempre a escrita como atividade paralela da minha vida clínica”. E foi o cérebro que lhe alimentou a escrita. E não apenas o seu. “Ao longo destes anos em que fui cirurgião do cérebro recolhi muitas memórias e histórias. Certamente foi a esse manancial, a esse tesouro, que fui buscar muito material para o que escrevi.” Escreveu nove livros e uma biografia de Egas Moniz, sem nunca dar o salto para o romance, unicamente por “pudor”. “Acho que nunca seria capaz de escrever uma novela ou um conto.” No final do ano passado estava a escrever as suas memórias, uma forma de se ocupar, porque já não tinha de ir todas as manhãs para o Santa Maria, coisa que lhe “dava enorme prazer”. “Decidi que ia entreter-me com a minha inteligência.”
João Lobo Antunes gostava de contar histórias e contava-as bem. E jeito não lhe faltava, nem histórias. Um exemplo foi o episódio que relatou, em entrevista ao Diário de Notícias, em 2001, ano em que, já adultos, ele e o irmão mais velho António Lobo Antunes voltaram a partilhar o quarto da meninice. “Este ano aconteceu-me uma experiência extraordinária: voltei a dormir num quarto com o meu irmão António. Era preciso dormir e era o quarto que havia. Sei que ele se levantou, eu estava ainda meio a dormir, passou por mim e fez-me uma festa no cabelo. Irmão mais velho. E eu tive de lhe tirar os óculos porque ele tinha adormecido com o livro e tinha a luz acesa. Fechei a luz, e depois dormimos, claro. Havia qualquer coisa de simbólico. De regresso. As camas eram as mesmas, de solteiros, e cabíamos ainda.”
Aos nove livros, mais a biografia, que escreveu — somam-se mais de 180 artigos científicos e alguns ensaios. João Lobo Antunes foi ainda mandatário das candidaturas a Presidente de Sampaio e de Cavaco e desde 2006 que integrava o Conselho de Estado.
Os prémios e distinções
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Lobo Antunes foi distinguido com vários prémios nacionais e internacionais, dos quais se destaca o Prémio Pessoa, em 1996. Foi ainda laureado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, em 2004, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, em 2014, o Prémio Nacional de Saúde em 2015 e a 25 de abril deste ano recebeu das mãos do Presidente da República a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
O neurocirurgião foi também vice-presidente para a Europa do World Federation of Neurosurgical Society, presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, presidente do Conselho Superior de Ciência, Tecnologia e Inovação e da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa e da Academia Portuguesa de Medicina. E teve um papel muito importante no processo de fusão da Universidade Clássica com a Universidade Técnica.
E agora uma nota para a terceira paixão que Lobo Antunes foi dando a entender nas entrevistas que deu: as mulheres. Descrevia-as como “um mistério”. “Se calhar porque eu próprio sou capaz de ter um temperamento feminino nalgumas coisas, não me custa admitir. Tenho uma sensibilidade feminina. Há uma superioridade biológica na mulher, na aparente fragilidade. É um tempero de emoção e inteligência, (…), que a mim me agrada mais.” E talvez por isso se tenha apaixonado tão cedo: “Tinha seis ou sete anos. Comecei muito cedo. Depois vi nas Aventuras do Tom Sawyer ele próprio a fazer macaquices para encantar uma, Amy, se bem me lembro: dependurado no braço da árvore, fazendo o pino, etc. Aquelas demonstrações do macho, do pavão, muito jovem e muito inocente, que abre a cauda. Percebi que aquilo era muito biológico”.
Em entrevista ao Expresso, no final de 2015, Lobo Antunes citou Montaigne para dizer que “todos os dias conduzem à morte”. “O que assusta é a morte interromper a dádiva da vida.” Esta quinta-feira foi assustadora para muitos dos seus familiares, amigos e admiradores. A vida de João Lobo Antunes foi interrompida pela morte.