Invasores. É o apelido de qualquer ser humano. Exploradores que do medo fazem uma curiosidade poderosa demais para ser ignorada. Foi esse o ímpeto que nos pôs a bordo de caravelas para dar novos mundos ao mundo. Foi esse o ímpeto com que nos sentámos no primeiro avião e ganhámos asas. Subimos as montanhas mais altas do planeta, mergulhámos nas profundezas. Quando nada disso já nos bastava, quando o horizonte já não era uma fronteira, olhámos para o céu. E víamos as estrelas quando Iuri Gagarin nos olhou a todos de cima avisando que dali não via Deus. Víamos as estrelas quando Kennedy prometeu levar-nos à Lua “não porque era fácil, mas exatamente porque era difícil” e depois Neil Armstrong deu aquele “pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade”. Passados quarenta e sete anos, Barack Obama pôs-nos outra vez a deambular pelas estrelas, dizendo que nos íamos “impulsionar pelo Sistema Solar fora, não apenas para o visitar, mas para ficar”. Disse que o faríamos, em território marciano, na próxima década. Mas e, agora, será que de tanto sonhar com as estrelas, começámos a sonhar alto demais?
Um grande passo da Lua para Marte
Está (quase) tudo ao nosso alcance, confessa Emmet Fletcher, porta-voz da Agência Espacial Europeia, ao Observador após a apresentação na embaixada dos Estados Unidos em Portugal da nova série “Marte”, que estreia este domingo na National Geographic às 22h30. A série, que pode chegar à RTP em seis meses, junta o conhecimento científico da revista com o know-how do entertenimento da 21st Century Fox e imagina o mundo em 2033, quando as agências espaciais se juntam para levar a missão Daedalus a Marte. Pura ficção?
Estamos tecnologicamente mais preparados agora para chegar a Marte algures nos próximos dez anos do que estávamos de chegar à Lua em 1961, quando John F. Kennedy deu aquele pequeno grande passo. Mas os planos de hoje, embora igualmente ambiciosos, são diferentes: “Ir a Marte depende mais da quantidade de recursos que temos veiculadas para esse projeto. Quando Kennedy disse que enviaria astronautas à Lua e que os traria de volta e em segurança, a percentagem de investimento do produto interno bruto dos Estados Unidos era uma imensidão. Nada como é agora. Esse é o nosso maior problema, porque a engenharia é algo que podemos criar. A tecnologia que temos ao nosso dispor já não é motivo de preocupação. Os recursos financeiros são”, explica Fletcher.
O dinheiro é um problema, mas está a tentar ser ultrapassado através de uma filosofia muito simples: a viagem a Marte não pode ser uma corrida (como foi a ida à Lua nos tempos da Guerra Fria), tem de ser”um esforço cooperativo”. Os recursos de que precisamos para chegar a Marte são tão grandes que, neste momento, muitas das missões que se estão a desenrolar no espaço são o resultado de parcerias entre agências nacionais e internacionais e (até de) empresas privadas. A ExoMars, por exemplo, que tenciona explorar alguns dos mistérios marcianos, é um projeto conjunto entre a ESA (com os estados-membros europeus) e a Roscosmos, a agência espacial russa. O Telescópio Espacial James Webb, sucessor do Telescópio Hubble, é uma missão conjunta da ESA, da NASA e da Agência Espacial Canadiana. A falecida Rosetta, uma sonda enviada ao cometa 67P para encontrar algumas respostas sobre a origem da vida, era composta por materiais norte-americanos e alemães também. “Tudo isto só é possível se houver um consenso político nesse sentido, principalmente quando temos os olhos postos em Marte. Isso faz aliás parte da genética da ESA, que é composta por 22 estados-membros. Todos os dias mostramos que vinte e dois países a trabalharem juntos podem fazer coisas fantásticas. Porque no fundo tudo se resume a Ciência“.
Uma conquista contra a morte
E a Ciência reconhece que estamos a tentar entrar num mundo de facto agressivo. E não queremos apenas entrar, mas viver. Da próxima vez que olhar para as estrelas e encontrar um ponto vermelho intrémulo no céu, está na verdade a encarar um mundo a 60 milhões de quilómetros de distância onde um ser humano ficará exposto a uma dose de radiação duzentas vezes maior do que a que está exposto num ano na Terra. É uma quantidade tão grande de radiação cósmica que poderia alterar a cadeia de ADN e as células cerebrais.
Os ossos começariam a definhar até perderem dez por cento da sua massa original. Os músculos que suportam os nossos joelhos e o fémur minguariam na viagem até Marte por não estarem sujeitos à força da gravidade. Os líquidos corporais não seriam drenados. Estas são apenas alguns dos efeitos de uma longa estadia no espaço, comprovadas depois de Scott Kelly, um astronauta norte-americano, ter ficado um ano inteiro na Estação Espacial Internacional.O estudo serviu exatamente para dar mais respostas sobre o que é necessário preparar para uma viagem saudável até Marte, um planeta com apenas um por cento da atmosfera terrestre e um terço da gravidade e que é tão agreste na primavera marciana como é a Sibéria no meio do inverno terrestre. Estar em Marte seria tão difícil como subir o monte Evereste sem uma máscara de oxigénio. Ou seja, mortífero.
“Enfrentamos riscos, absolutamente. É sempre um risco ir ao espaço, mas é um risco que estamos dispostos a cometer. O perigo é necessário para fugir ao comodismo: estamos fora do nosso ambiente natural, estamos sentados nas máquinas mais complexas alguma vez construídas pelo ser humano. Estas máquinas queimam duas centenas de toneladas de combustível em dois minutos, por isso há um risco”, admite Emmet Fletcher ao Observador. A 23 de abril de 1967, o soviético Vladimir Komarov morreu quando a cápsula da missão Soyuz 1 explodiu ao reentrar na atmosfera terrestre. Foi a primeira morte humana confirmada na história da exploração espacial. A 28 de janeiro de 1986 o vaivém Challenger explodiu 73 segundos depois de descolar e toda a tripulação – sete astronautas – perdeu a vida. A 1 de fevereiro de 2003, sete astronautas morreram quando vaivém o Columbia se desintegrou a dezasseis segundos de pousar no chão. Estamos prontos para mais vítimas?
A SpaceX acredita ter a resposta. A empresa de exploração espacial privada de Elon Musk coloca todas as esperanças na retropopulsão sónica da Falcon 9, que aterrou com segurança num navio em alto-mar em dezembro do ano passado depois de ter sido lançado do Cabo Canaveral, Florida. Ainda este ano, a SpaceX pretende levar um ser humano para o espaço a bordo deste veículo de lançamento descartável: se tudo correr bem, a empresa fica ainda mais confiante de que é possível levar o Homem a Marte em 2025 e com custos reduzidos: apenas 1% do que atualmente é necessário para levar satélites ou objetos para a Estação Espacial Internacional. Para Elon Musk, não há outro remédio: é em solo marciano, garante, que vai morrer um dia, mas só depois de ter dado “um passo essencial no caminho para a fundação de uma colónia em Marte”.
A NASA é um pouco menos ambiciosa: diz que vamos a Marte, sim, mas que primeiro vamos só “farejar” o planeta, enviando astronautas apenas para o orbitar. Nada parecido ao entusiasmo e Vdon Braun em 1969, quando correu até Richard Nixon, ainda com a imagem daqueles fatos brancos a caminhar pelo solo da Lua, a pedir que rumássemos também a Marte logo em 1982. Hoje, já é uma vitória termos conseguido pousar o veículo Curiosity no solo avermelhado do planeta.
A ESA também pensa num passo de cada vez, admite Emmet Fletcher. A missão ExoMars provou ser necessário ter paciência: embora a sonda TGO tenho entrado corretamente na órbita de Marte no mês passado, a plataforma Schiaparelli não aterrou como era planeado: o pára-quedas soltou-se cedo demais e a máquina entrou em queda livre mais cedo do que era suposto. Estilhaçou-se a 60 milhões de quilómetros da Terra e transformou-se apenas numa mancha negra nas imagens dos satélites que agora orbitam o planeta. Os cientistas já ultrapassaram a amargura da falha: agora querem aprender com os erros até 2020, altura em que os europeus vão lançar um Rover no solo marciano.
É que antes de enviar humanos para Marte, há um desvio a fazer. Primeiro, vamos regressar à Lua: “Uma das propostas como parte da exploração é, na verdade, ir à Lua primeiro. Claro que isto é tudo discutível e todas as agências espaciais têm as suas próprias opiniões, mas uma das coisas que estamos a considerar seriamente é ensaiar a nossa ida a Marte usando a Lua como uma base de testes“, explicou Emmet Fletcher ao Observador.
Vamos. Temos de ir. Devemos ir?
Tudo isto existe e tudo isto parece ser o nosso fado. A SpaceX está tão certa que a nossa permanência na Terra não pode ser eterna que alguns trabalhadores vestem t-shirts com a mensagem “Ocupar Marte” para os motivar a encontrarem uma nova casa – como se o teto da atual estivesse prestes a desabar. A verdade é que estarmos vivos de todo é um milagre (cientificamente falando): todos os dias desafiamos a morte na Terra, enfrentando bactérias e vírus que podem ser fatais. Um dia, talvez não consigamos escapar ao sufoco provocado pela nossa exploração exagerada dos recursos terrestres, nem escapar de um meteorito tão implacável como o que extinguiu os dinossauros. Faltava-lhes um programa espacial, brincou uma vez Larry Niven, escritor de ficção científica norte-americano.
A cada milhão de anos, recorda Fletcher, a Terra é exposta a uma extinção em massa e nós temos de estar prontos para sermos “os mais aptos” previstos por Darwin na Lei da Sobrevivência. Mas pode ser a nossa pequenez a rampa de lançamento para a grandeza dos nossos feitos. Carl Sagan, o astrónomo e astrobiólogo que mais divulgou a Ciência do espaço, disse que “em toda a sua caminhada, todas as civilizações planetárias vão ser ameaçadas por impactos do espaço” e, por isso, “todas as civilizações sobreviventes têm o dever de se tornarem exploradoras do espaço, não por causa de “qualquer romantismo, mas por “uma razão mais prática que se pode imaginar: permanecer vivo”.
Claro que hoje as coisas são diferentes, apazigua Emmet Fletcher: temos tecnologia suficiente para prever de onde vem o perigo e de como enfrentá-lo. Mas é o desconhecido que mais assusta: “A verdade é que não sabemos como é que as coisas vão correr no Sistema Solar. Mesmo em relação ao Sol, não sabemos tudo sobre como é que ele se comporta. Neste momento, tem estado num período bastante calmo, estável e compreensão para nós, mas há a possibilidade de isso mudar. E nesse caso nós temos de saber como replicar a Terra noutro lado qualquer”.
Sim, replicar. Porque a ideia de explorar e colonizar Marte não passa apenas por aprendermos a viver num planeta que não suportamos naturalmente: a ideia é transformá-lo numa Terra com oceanos e uma atmosfera suportável. Sabemos que é possível porque temos provas de que aconteceu em Vénus: lá, a atmosfera era em tudo semelhante à nossa, mas depois alterou-se à medida que envelheceu. Em Marte, temos matéria-prima para isso: há dióxido de carbono, há oxigénio, há água congelada e até metano (embora não saibamos bem como). A colonização do planeta, por mais distante que possa parecer, pode mesmo acontecer. Mas deve acontecer? Será o nosso plano ético?
À National Geographic, o cientista planetário Chris McKay diz que “a sugestão de que os seres humanos podem encontrar refúgio em Marte depois de estragarem a Terra é ética e tecnicamente absurda“. E prossegue: “Acho que precisamos de perceber que o fracasso não é uma opção. A noção de Marte como barco salva-vidas faz o final do Titanic parecer feliz”.
A ESA ainda não pensa em viver em Marte, mas diz que ir lá é simplesmente necessário: a vida na Terra só pode melhorar se conhecermos bem o que que se passa lá fora. “Investir tempo, energia e dinheiro em explorar o Universo é exatamente investir os mesmos recursos na Terra. Temos muitos programas em andamento. Temos uma direção inteira completamente devota a observar a Terra: em reunião com a Comissão Europeia, no âmbito do programa Copérnico, estamos a lançar missões para estudar a Terra em vários campos, para que possamos entender, por exemplo, como é que a agricultura muda em função das estações e dos anos, quais são as tendências. Então, uma parte de tudo o que fazemos no espaço é para explorar o Sistema Solar. Outra parte é para explorar a Terra“, explica Emmet Fletcher. Ir a Marte é descobrir do que precisa o corpo humano para sobreviver. Isso ajuda-nos a sobreviver na Terra.
Fletcher afirma que é quase certo que um jovem na casa dos vinte anos ainda consiga assistir a uma “amartagem” com os pais ao lado, que ainda eram crianças quando o Homem chegou à Lua. Mas uma chegada a Marte, se acontecer tal como a planeamos agora, prova que não é tarde demais para explorar a Terra. Nem cedo demais para explorar o universo.