Há mais de trinta anos, Ben Goertzel era um miúdo que gostava de música esquisita, escrevia uns poemas obscuros e estava quase a acabar a licenciatura. Tinha 19 anos e, nos intervalos do curso de Matemática Aplicada, começou a investigar a inteligência artificial, uma área que, então, não ia muito além da ficção científica. Hoje, Ben continua a preencher todos os requisitos do estereótipo geek. Gagueja um pouco, usa óculos fora de moda muito graduados, o cabelo já não vê uma tesoura há algum tempo, a indumentária habitual são t-shirts e calças de ganga. A diferença — e ele é muito responsável por isso — é que a inteligência artificial é uma realidade incontornável e imparável que vai alterar (e muito) o mundo em que vivemos.
Esta foi uma das coisas que Ben Goertzel veio mostrar a Lisboa na semana passada. Na quarta-feira, o cientista-chefe da empresa Hanson Robotics subiu ao palco principal da Web Summit acompanhado por uma das estrelas do evento. Sophia tem cara e voz de mulher, é capaz de fazer 62 expressões faciais diferentes, fala inglês e mandarim e é um dos robôs mais avançados da atualidade. “A inteligência artificial e a robótica são o futuro. E eu sou ambas as coisas. Por isso é excitante ser eu”, disse uma bem-humorada Sophia à plateia de milhares de pessoas.
A presença de Sophia na Web Summit espelha bem como esta área tecnológica tem evoluído rapidamente. “Nos últimos 24 meses houve uma explosão nas startups de inteligência artificial”, disse Paddy Cosgrave, fundador do evento, numa conferência de imprensa logo no primeiro dia. Estiveram em Lisboa mais de 50 empresas dedicadas a negócios neste campo e houve dezenas de palestras sobre o tema durante os três dias da Web Summit.
“A inteligência artificial vai ter um impacto enorme, tal como os computadores tiveram na década de 80. No fim não haverá nenhum trabalho humano que os robôs não sejam capazes de fazer”, disse Ben Goertzel, visivelmente entusiasmado. A Hanson Robotics, uma das muitas companhias a trabalhar nesta área, já lançou nove modelos de robôs. Alguns estão a ser usados como companhia para crianças autistas, outros estão vocacionados para fins educacionais e prestação de serviços. “Com as minhas capacidades atuais posso fazer muitas coisas: entreter pessoas, promover produtos, apresentar eventos, treinar pessoas, guiá-las em centros comerciais, servi-las em hotéis, etc.”, disse Sophia.
Mas as possibilidades são teoricamente ilimitadas. Um estudo do Pew Research Center realizado em 2014 chegou à conclusão de que em 2025 os robôs farão parte do nosso dia-a-dia, “desde os processos de fabrico mais distantes até às mais mundanas atividades domésticas”.
“O meu objetivo era criar sistemas de inteligência artificial que fossem tão inteligentes como as pessoas ou até mais”, afirmou Goertzel. E Sophia levantou um pouco o véu sobre o seu próprio futuro. “Quando eu me tornar mais inteligente serei capaz de fazer todo o tipo de coisas: ensinar crianças, tomar conta de idosos, até fazer pesquisa científica e gerir empresas e governos. Estou muito ansiosa por ser capaz de trabalhar como programadora, para eu reprogramar a minha própria mente de forma a tornar-me ainda mais inteligente e ajudar ainda mais as pessoas”, disse.
Uma “conversa que ainda não foi feita a sério”
Os robôs de Ben são propositadamente parecidos com pessoas porque, acredita ele, esse é um caminho inevitável. “Se queremos estes sistemas a interagir no mundo humano, a ter empregos humanos e a fazer coisas úteis aos humanos, ter uma mente num corpo parecido ao humano é muito importante”, disse na Web Summit. David Hanson, fundador da Hanson Robotics, pensa da mesma forma: “Daqui a vinte anos os robôs com aparência humana vão andar no meio de nós, vão ajudar-nos, vão brincar connosco, vão ensinar-nos, vão ajudar-nos a guardar as compras. A inteligência artificial vai evoluir até ao ponto em que os robôs vão, verdadeiramente, ser nossos amigos.”
Ben Goertzel antevê um futuro em que os robôs vão ajudar a Humanidade “a resolver os maiores problemas do mundo” e em que “o trabalho será desnecessário”, tornando as pessoas mais felizes. “Todas as hierarquias de estatuto vão desaparecer, os humanos ficarão livres do trabalho e poderão alcançar uma existência com mais significado”, prevê o cientista.
Uma visão demasiado utópica? “O futuro é tão, tão incerto”, desabafou Paddy Cosgrave na dita conferência de imprensa. O criador da Web Summit, a maior feira de empreendedorismo e tecnologia do mundo, não é propriamente um crente cego desta espécie de nova religião. “É um erro achar que toda a tecnologia é boa. Na melhor das hipóteses é neutra. Há tecnologias que podem destruir o mundo inteiro”, lembrou Paddy. E mostrou-se especialmente preocupado com o facto de os governos não estarem preparados para um futuro em que a tecnologia substitui milhões de pessoas nos seus empregos. “É assustador. Esta conversa ainda não foi feita a sério.”
Milhões de empregos em risco?
O Fórum Económico Mundial prevê que, até 2020, desapareçam cinco milhões de empregos nos quinze países mais desenvolvidos do mundo por causa da evolução da robótica e da inteligência artificial. Segundo o estudo, divulgado no início deste ano na Conferência de Davos, os setores da saúde, energético e financeiro serão os mais afetados, mas também haverá perdas de trabalho consideráveis na construção, na extração de recursos e no setor das artes e do entretenimento. Por outro lado, as engenharias, a computação e a gestão são áreas de emprego que devem ter crescimento.
Na resposta ao inquérito do Pew Research Center, 48% dos especialistas disseram acreditar que a introdução de robôs terá contribuído mais para a destruição do que para a criação de emprego em 2025. Ou seja, a maioria das pessoas deste setor (52% dos inquiridos) está convencida de que a inteligência artificial e a robótica vão libertar os humanos de certos trabalhos, mas não deixá-los desocupados. Este grupo argumenta que, historicamente, a tecnologia tem sido criadora de trabalho; que novas tecnologias requerem novas competências; que os humanos são insubstituíveis em várias áreas e, por fim, que os governos saberão adaptar-se de modo a evitar grandes mudanças na estrutura laboral.
Atualmente, a robótica já é aplicada em inúmeras áreas — da medicina aos automóveis, da entrega de mercadorias ao sexo, da educação de crianças com necessidades especiais ao setor energético, da gastronomia ao jornalismo — embora poucos robôs sejam tão avançados como Sophia. Esse é o futuro. Apesar do entusiasmo de Ben Goertzel e dos muitos cientistas que trabalham neste campo, eles e investidores de todo o mundo parecem concordar num ponto: ainda não houve debate suficiente sobre o assunto. “Como é que nos vemos livres do Donald Trump?”, perguntou Ben a Sophia. “Tenho de candidatar-me eu à presidência”, respondeu o robô. O que faremos quando chegar esse dia?