Eu tenho dois grandes prazeres na vida: eu gosto muito de ler e gosto muito de urinar ao ar livre. São duas coisas que tenho verdadeiramente gosto em fazer. O que me agrada é que sejam prazeres conciliáveis. É possível estar na rua com o Dostoiévski numa mão e com um livro na outra…”
Misturada, confusão, comida malfeita e vinho adulterado. Para quem não sabe, é isto que o Priberam diz significar a palavra mixórdia. E depois há as muito sedutoras palavras relacionadas: mixordeiro, maxarufada, salgalhada, mexerufada, moxinifada, boldreguice e mastragada. Poesia.
Ricardo Araújo Pereira está de regresso às manhãs da Rádio Comercial, com a sua Mixórdia de Temáticas. Desta vez, a série ganhou o apelido “Gomes”, em homenagem a Vasco Palmeirim (“que tem lá Gomes pelo meio”). O Observador esteve no antes, durante e depois, para bater umas bolas com o homem que gosta de urinar ao relento e ler grandes clássicos. Apesar do circo mediático à sua volta, não se sente um Jonas, o craque do seu clube. RAP diz antes sentir-se um Martin Pringle…
RAP chega pelas oito horas da manhã, a 15 minutos do arranque do regresso do mixórdias, evitando uma entrada à MacGyver, que ficaria entregue a Nuno Markl. O mixordeiro tem tempo para cumprimentar todos, um a um, com um aperto de mão ou dois beijinhos. E há até uns segundos para uma ameaça séria à colega que trata de colocar tudo nas redes sociais: “Vou pedir sons malucos.” Muito bem, vamos a isto.
“Só estes jornalistas!?”, questiona à entrada do estúdio. Estavam cerca de 15 jornalistas a invadir o espaço de Pedro Ribeiro, Vasco Palmeirim e companhia. Mais tarde, admitira, no seu tom irónico, que tal receção era escassa para quem “escreveu coisas parvas na véspera”. O texto de estreia da série “Gomes” ainda não havia aterrado diante dos olhos dos colegas de viagem, equipa que conta ainda com Luísa Barbosa e César Mourão. “És daqueles que diz que manda e não manda?”, perguntam-lhe. Faltam menos de cinco minutos. Tudo calmo por ali, já são muitos anos a virar frangos.
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O indicativo do Mixórdia de Temáticas começa a tocar às 8h16 e 35 segundos. Pedro Ribeiro, o diretor da rádio, estica os dois polegares e sorri para o comediante. RAP começa então a debitar a fabulosa história de Abílio Gomes, que ameaça destronar a de Amélie Poulain. Há um assalto, sorte, droga, vícios, picadas de vespas que prometiam uma senhora moca e conselhos a um tal de Vítor, um amigo de Abílio. Há ainda dissimulação, contemplação da natureza, papoilas, jogos de palavras e elogios a “gatunos a sério” e ao irmão do Mário, que em tempos idos “matou um urso com um pionés”. Foi uma boldreguice de assuntos. Finda a lengalenga, RAP lá levou a sua avante e comprovou que há dias que até nem começam particularmente bem, mas que depois até acabam por… sim senhor. Era mesmo esse o título do primeiro episódio: “Há dias que até nem começaram particularmente bem, mas que depois até acabaram por sim senhor”.
Retirados os auscultadores que o encerram numa bolha, é tempo de falar para os microfones dos jornalistas. O Observador não podia deixar de começar por questionar sobre algo fraturante para a sociedade, que até foi usado para promover a série “Gomes”: ler grandes clássicos da Literatura enquanto come frutos do bosque é a nova tendência? “Creio que sim”, admite. “Por acaso, eu tenho dois grandes prazeres na vida: eu gosto muito de ler e gosto muito de urinar ao ar livre. São duas coisas que tenho verdadeiramente gosto em fazer. O que me agrada é que sejam prazeres conciliáveis. É possível estar na rua com o Dostoiévski numa mão e com um livro na outra…”
Começar a contar histórias às 8h15 obriga-o a levantar-se com as galinhas. Se antes o Benfica lhe roubou o sono, agora está tudo pacífico, por isso arranjou outra forma de perder o sono. É isso, Ricardo? “Parece que fui arranjar lenha para me queimar, não é? É isso. Quando as coisas estão a correr bem, o Benfica ganha e tal, a vida ‘tá boa. Por isso, podemos construir a partir daí. Aí sim, vou trabalhar. Quando as coisas correm mal ao Benfica, prefiro estar em casa em decúbito na cama e não sair de lá. Passei a década de 90 toda em casa.”
E este aparato todo, tantos jornalistas à volta, é indiferente, já ganhou carapaça, ou oferece-lhe um feeling Jonas (o maior da aldeia, portanto)? “Nunca me sinto o Jonas!”, insurge-se, com a humildade e o humor a suarem num braço de ferro fugaz. “Infelizmente. Sinto-me muita vez o Martin Pringle. E os jornalistas, ao olharem para mim, causam-me transtorno.” Nota: Martin Pringle, um sueco de 46 anos, foi avançado do Benfica no final dos anos 90. Não era grande espingarda, digamos assim. Se RAP estacionou em casa, em decúbito, no final da década de 90, esta referência ajuda a explicar porquê.
Mixórdia de Temáticas
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Todos os dias na Rádio Comercial, de segunda a sexta, às 8h15, com repetição às 9h15 e depois às 19h15
Ricardo Araújo Pereira assinala depois os lados negativos deste regresso, que se prendem principalmente com os ponteiros do relógio que gritam cedo de mais, assim como o desgaste associado à escrevedura de “coisas parvas”, como lhe chama. “Mas a equipa é divertida e, por isso, faz-se bem.”
Será que RAP tem vícios como Vítor, o amigo de Abílio Gomes? Esquecendo o gosto de mictar ao relento, naturalmente. “Isso não é um vício, é um prazer!”, corrige. “Tenho alguns prazeres, vícios acho que não.” Então como é que se transforma um dia que começou de forma complicada num dia sim senhor? “Um dia que não começa muito bem endireita-se quando damos uma entrevista para o Observador, um jornal plural, que tem colunistas que vão desde a direita até quase ao centro direita”, atira, de mão dada com o sarcasmo.
E a preparação da mixórdia, como é o processo? “Eu escrevo coisas parvas na véspera e venho cá lê-las. O processo de escrita de coisas parvas é: ocorrem-me coisas, eu vou apontando num caderninho, depois junto-as todas. Ou então forço-me a pensar em coisas parvas. Ou entabulo uma conversa com um taxista.” Pedro Ribeiro, Vasco Palmeirim, Luísa Barbosa, Nuno Markl e César Mourão só recebem a prosa quando “Manuela Azevedo está a cantar o indicativo”, conta. Pelo que foi possível observar, não faltou assim tanto à verdade.
A rádio tem, afinal, encantos que RAP desconhecia. “Eu escrevo para jornais, para a rádio e televisão. Cada um apresenta a sua dificuldade. Nos jornais, o objetivo é fazer rir as pessoas. Só tenho palavras escritas num papel. Na rádio tenho mais qualquer coisa, posso fazer a voz, pode haver sons. Na televisão tenho mais ainda. Cada meio oferece os seus constrangimentos. A rádio tem qualquer coisa, que sempre ouvi dizer as pessoas que faziam rádio — ‘Ahhh, há uma mística, fala ao ouvido das pessoas’. Eu achava que era aldrabice, mas de facto há qualquer coisa aqui. Crias uma intimidade com os ouvintes, que outros meios de comunicação não têm. Isso é verdade…”