(crónica originalmente publicada em dezembro de 2016 sobre o último concerto de Charles Aznavour em Lisboa)

Há oito anos, Charles Aznavour actuou em Lisboa. O concerto coincidiu com o meu aniversário e, pelas chamadas circunstâncias de força maior, não pude estar lá nesse dia no pavilhão que ainda era atlântico (agora nem pavilhão, nem atlântico). Como Aznavour já tinha 83 anos, pensei que tinha perdido a derradeira oportunidade de o ver ao vivo. Por essa razão, quando ontem, dez minutos após a hora marcada, as luzes da Meo Arena se apagaram, os músicos tomaram os seus lugares e o filho do senhor Aznavourian entrou em palco, senti-me cúmplice de um grande golpe colectivo para roubar tempo ao tempo, nas barbas do próprio.

Não era o único, nem sequer o principal. A plateia era maioritariamente constituída por senhoras e senhores de idade avançada que cresceram num país culturalmente francófilo e que ontem estavam ali em homenagem a um resistente e também a prestar tributo à sua própria juventude perdida, aos “vinte anos” que Aznavour cantou em tantas canções, ao tempo que passa sem que o possamos parar.

O concerto arrancou com “Les Émigrants” – homenagem aos emigrantes como a família de Aznavour, artistas arménios que foram para França na década de 1920 – e, ao longo de mais de uma hora e meia, os momentos mais altos foram as canções do “outro tempo” e que também elas já falavam sobre um “outro tempo” que só a voz do “cantor de variedades” (como Aznavour, com humor autodepreciativo, se referiu a si mesmo) pode recuperar. “Hier Encore” (“J’avais vingt ans / Je gaspillais le temps / En croyant l’arrêter”), “Sa Jeunesse” (“Lorsque l’on tient / Entre ses mains / Cette richesse / Avoir vingt ans / Des lendemains / Pleins de promesses”), “Désormais” (“Désormais / Mon cœur vivra sous les décombres / De ce monde qui nous ressemble / Et que le temps a dévasté”), o hino nostálgico “Les Plaisirs Démodés” e , claro, aquela que fala de um tempo que quem tem vinte anos não se lembra, “La Bohème”, que é também a história de um regresso ao lugar onde um artista passou fome, amou, criou e foi feliz para o encontrar irreconhecível, destruído pelo tempo (“Je m’en vais faire un tour /A mon ancienne adresse / Je ne reconnais plus / Ni les murs, ni les rues / Qu’y ont vus ma jeunesse / En haut d’un escalier / Je cherche l’atelier dont plus rien ne subsiste / Dans son nouveau décor / Momtmartre semble triste / Et les lilas sont morts”).

Faltaram clássicos como “Il te Suffisait que Je T’aime” (“Nous avions vingt ans toi et moi / Quand on a sous le même toit / Combattu la misère ensemble […] Si je le pouvais mon amour / Pour toi j’arrêterais le cours / Des heures qui vont et s’éteignent”) ou “Je N’ai Rien Oublié” (“Je croyais que tout meurt avec le temps qui passe”), mas Aznavour já tinha cantado o suficiente sobre o desencanto do que se perdeu e o consolo nostálgico de, pelo menos, se ter vivido alguma coisa que valha a pena ser lembrada.

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Ver Aznavour em palco aos 92 anos com a energia possível (e ainda é tanta) – as mãos que tremem, os suspensórios que lhe dão um ar infantil de marioneta, a voz que muitas vezes já não chega lá – a cantar estas canções sobre a memória, os efeitos terríveis do tempo e a impossibilidade de os enfrentar é quase uma ironia, como se afinal houvesse mesmo um segredo para travar o tempo e ele fizesse questão de o revelar ao ouvido da multidão. Ali, à volta daquela pequena figura a dançar sozinha pelo palco, andaram os fantasmas do passado, Piaf, Bécaud, Trénet ou Truffaut, que o dirigiu em “Disparem sobre o Pianista” (a propósito, Elton John, que hoje actua em Lisboa, tem um álbum precisamente intitulado “Don’t Shoot Me, I’m Only the Piano Player”) e foi possível sentir o tempo a escapar-nos por entre os dedos, ainda que, por mais de uma vez, Aznavour tenha prometido regressar.

Falou sobre a poesia de Pessoa, que leu em francês, e deu um miminho ao público, cantando “Lisboa”. Pena é que para tal tenha retirado do alinhamento habitual “Que C’est Triste Venise”, para incomensurável tristeza da senhora sentada atrás de mim e que, já depois de as luzes do palco se acenderem, implorava desafinadamente, mas com todo o coração, por “aquela música tão linda”. E na gestão do tempo do concerto, Aznavour foi implacável. Pode ser o trovador do tempo perdido, mas não tem tempo a perder. Após cantar “Emmenez-moi”, com o público a acompanhar com palmas mais ou menos ritmadas, o cantor abandonou o palco e, apesar da insistência geral, já não regressou. Uma hora e meia tinha passado num instante e, para mim, a recuperar avidamente o que tinha perdido há oito anos, teria valido a pena mesmo que Aznavour só tivesse cantado “Comme Ils Disent”, sobre a vida de um travesti que vive com a mãe, uma tartaruga, uma gata e dois canários, na rua Sarasate. Antes de cantar, Aznavour lembrou que compôs a canção numa época em que a homossexualidade ainda era um tabu (1972), mas que ele não se importava porque sempre foi um homem livre. E como foi bom poder testemunhar essa liberdade.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015.