Só nos últimos dois meses, o secretário-geral do Podemos, Pablo Iglesias, e o porta-voz daquele partido, Iñigo Errejón, beijaram-se duas vezes. A primeira foi a 29 de outubro, com Pablo Iglesias a surpreender o seu camarada com um beijo na cara enquanto este dava uma entrevista. A segunda foi já no dia 15 de dezembro, num desafio colocado por uma apresentadora do Intermedio, um programa de notícias satírico espanhol, que chamou cada um para seu lado e pediu-lhes que se beijassem. E assim foi: um beijo e depois um abraço.
Acontece que aquilo que as imagens sugerem não podia estar mais longe da verdade — por trás daqueles beijos encenados (que estão longe de terem sido os primeiros de Pablo Iglesias, habituado a presenteá-los aos seus camaradas de fila), está a maior crise interna na curta mas ainda assim atribulada história do Podemos.
Tudo isto acontece em antecipação do segundo congresso do Podemos, sob o título oficial de II Assembleia Cidadã e também com a designação oficiosa de Vistalegre 2, e que opõe duas correntes: a de Pablo Iglesias e a de Iñigo Errejón, ambos cabeças-de-lista que vão a votos no congresso, que será entre 10 e 12 de fevereiro de 2017. Além destas duas listas, há uma terceira, da corrente Anticapitalista. Mas é entre a do líder do Podemos e do seu número dois que existe o verdadeiro debate. E, nos últimos tempos, sobretudo em torno do dia de Natal, não tem sido particularmente cordato.
Tudo começou com a destituição de José Manuel López, próximo de Iñigo Errejón, do cargo de porta-voz do grupo parlamentar do Podemos na assembleia regional da Comunidade de Madrid. Isto aconteceu dias depois de o método eleitoral a ser usado no Vistalegre 2 ter sido votado, com o modelo defendido por Pablo Iglesias a vencer apenas com 41,5% dos votos frente a 39% da opção preferida do seu número dois, que assim ganhou terreno. Quando os resultados foram conhecidos, Pablo Iglesias ensaiou um tom conciliador, conforme escreve o El País, que refere que ele prometeu acordos com todas as correntes dentro do partido e lamentou que “o Podemos tenha provavelmente mostrado nas últimas semanas a pior imagem da sua história”. Era dia 22 de dezembro.
Mesmo assim, e apenas um dia depois, a votação para substituir o iñiguista José Manuel López do lugar de porta-voz em Madrid pela pablista Lorena Ruiz-Huertas avançou. Ao todo, 27 pessoas votaram a favor da mudança, uma absteve-se e só três se opuseram. No dia 23 de dezembro, Iñigo Errejón reagiu assim no Twitter: “Ontem [dia 22 de dezembro], as pessoas votaram por mais democracia, diversidade e entendimento para ganharmos juntos. Hoje [link para notícia da destituição de José Manuel López]. Este não é o caminho”.
Ayer la gente votó más democracia, diversidad y entendimiento para ganar juntos. Hoy: https://t.co/UeYahd8Drw Este no es el camino.
— Íñigo Errejón (@ierrejon) December 23, 2016
O contra-ataque também aconteceu no Twitter, com vários pablistas a atacarem abertamente o número dois do Podemos naquela rede social, usando a hashtag #IñigoAsíNo. Ou seja, “Assim Não, Iñigo”.
O primeiro a dirigir-se a Iñigo Errejón nesses termos foi Pablo Echenique, secretário do Podemos e, por isso, uma figura de quem é esperada uma postura neutra em conflitos internos. “Sabes que gosto muito das tuas ideias, mas a dinâmica fraturante, de famílias e quotas é velha e divide o Podemos. Companheiro, assim não”, escreveu no Twitter.
https://twitter.com/pnique/status/812639284150706176?ref_src=twsrc%5Etfw
Também Ramón Espinar, líder do Podemos em Madrid e defensor do afastamento do ex-porta-voz do partido naquela região, reagiu no Twitter. “Sempre achei que Iñigo Errejón é uma das pessoas mais brilhantes que conheço. É tão imprescindível como a união. #IñigoAsíNo”, escreveu o político, próximo de Pablo Iglesias.
Siempre he pensado que @ierrejon es una de las personas más brillantes que conozco.
Es tan imprescindible como la unidad.#ÍñigoAsíNo
— Ramón Espinar ???????? (@RamonEspinar) December 24, 2016
Do lado dos defensores de Iñigo Errejón destacou-se Rita Maestre, que atualmente faz parte do executivo de Madrid, sob a liderança da ex-juíza Manuela Carmena. Segundo o El País, Rita Maestre disse que a “campanha” do #IñigoAsíNo “só pode ser definida como um erro crasso, como um cálculo muito mal feito e como algo que prejudica o Podemos”. Sobre Iñigo Errejón, disse que ele “não é só o número dois do partido, mas também uma pessoa sem a qual o Podemos não estaria onde está agora” e que sem ele “o Podemos não teria nascido e não teria conseguido cinco milhões de votos”.
Também Clara Serra Sánchez, deputada do Podemos na assembleia regional de Madrid, reagiu no Twitter. “Ontem o Pablo falava de má imagem. Hoje são os seus que fazem uma campanha contra quem deu a pele para que chegássemos aqui”, escreveu.
Ayer Pablo hablaba de mala imagen.Hoy los suyos hacen campaña contra quien se ha dejado la piel para q lleguemos aquí #FelizNavidadParaTodas
— Clara Serra Sánchez (@Clara_Serra_) December 24, 2016
Afinal, o que distingue Errejón e Iglesias?
Como acontece regularmente sempre que há lutas que roçam o fratricídio dentro dos partidos, torna-se difícil, para quem olha de fora, perceber, afinal, o que verdadeiramente os separa. Ainda assim, há algumas diferenças que saltam à vista entre Pablo Iglesias e Iñigo Errejón e os projetos que defendem tanto para o partido como para Espanha.
A primeira diferença tem a ver com a forma. Pablo Iglesias, que habituou os espanhóis ao seu estilo intempestivo e expressivo, quer que o partido seja mais “das ruas”, que esteja disposto a “cavar trincheiras na sociedade civil” e que, em suma, se apresente como um movimento político de protesto e combativo. Já Iñigo Errejón quer um Podemos que “não dê medo” àqueles que ainda não depositaram a sua confiança e o seu voto naquele partido. Para isso, prefere uma postura mais suave e uma mensagem mais positiva, como a que foi apresentada na campanha das eleições de junho de 2016, que, sob a direção do próprio Iñigo Errejón, operava sob o slogan “o sorriso de um país”.
A segunda diferença parte da primeira, mas não é por isso secundária. Trata-se da relação do Podemos com os outros partidos, principalmente com os socialistas do PSOE. Sensivelmente três meses depois das primeiras eleições do recente bloqueio político em Espanha e outros três meses antes das segundas eleições, o Podemos podia ter permitido ao PSOE governar com a ajuda do Ciudadanos, formando uma coligação contra o Partido Popular, que venceu as eleições aquém da maioria absoluta. Ainda assim, apesar de algumas partidas em falso e encontros entre Pablo Iglesias e o então secretário-geral do PSOE, Pedro Sánchez, o Podemos não deu a mão aos socialistas.
Depois disto, já nas segundas eleições legislativas do impasse, tanto o Podemos como o PSOE viriam a perder deputados e o PP a ganhá-los — e, embora a custo, Mariano Rajoy conseguiu formar um novo Governo em finais de outubro.
Dentro do Podemos, discute-se a postura do partido durante o bloqueio político. Neste dossier, também Pablo Iglesias é menos diplomático, impondo a entrada do Podemos em qualquer executivo com o PSOE como condição para uma viabilização governamental. Já Iñigo Errejón teria preferido uma solução com o Podemos de fora, exercendo tanto quanto possível um papel regulador do PSOE a partir das bancadas parlamentares e nunca em Moncloa.
Ainda na relação com outros partidos, Pablo Iglesias está aberto à continuação da recente aproximação à Izquierda Unida (nas eleições de junho, concorreram nas mesmas listas sob o nome Unidos Podemos) e Iñigo Errejón prefere que o Podemos atue de forma mais isolada, podendo aliar-se pontual e estrategicamente a partidos tanto à sua esquerda como à sua direita.
“Essa vai ser a discussão de ideias fundamental. A discussão tem a ver com a direção que o Podemos vai tomar, não com quem o dirige”, disse Iñigo Errejón sobre o Vistalegre 2 em meados de novembro. Porém, é precisamente nisso que se tem tornado a recente crise do Podemos: uma luta entre dois egos onde aquilo que mais se tem discutido tem sido quem pode dirigir o partido do que o caminho que ele deve conseguir.