Oitocentos alunos da Universidade Internacional de Lisboa, que funciona há 40 anos na Rua das Flores, em Lisboa, estão chocados com a decisão da Câmara Municipal que exige a saída imediata da instituição daquele local. A decisão política, soube o Observador, assenta em três justificações: o valor do m2 do edifício, demasiado alto para permitir a continuidade da cedência do espaço, as condições de segurança, que a câmara entende que o edifício não tem, e a falta de disponibilidade da autarquia para realizar a requalificação do prédio.
A notícia caiu como uma bomba no início de janeiro e surpreendeu a reitoria, professores e principalmente os alunos. “Ficámos surpreendidos e até chocados pelas decisões do senhor Fernando Medina, que contrastam absolutamente com a posição que a câmara tem vindo a assumir publicamente no apoio à Terceira Idade, de promoção do envelhecimento ativo e do combate ao isolamento deste grupo etário”, realçou ao Observador o Reitor José Miguel Miranda, sobrinho de Herberto de Miranda, o fundador do projeto que este ano celebra 40 anos.
Na missiva da Câmara Municipal de Lisboa foi apresentada, no entanto, uma solução para que o projeto permaneça ativo, tendo a autarquia disponibilizado outros espaços na cidade: duas lojas comerciais em Entrecampos ou no Lumiar ou então um armazém na zona do Beato. Mas estas soluções não agradam ao executivo da UITI. “Se a universidade sair deste lugar vai desaparecer um ponto de encontro da cidade. Esta instituição tem história e é uma referência para muita gente. Se sair daqui a nossa população, que é idosa e já tem algumas limitações, não vai permanecer, porque não terá condições para se deslocar para as periferias”, prosseguiu o reitor, mostrando-se recetivo a alternativas “desde que sejam viáveis”.
Também Stella Tavares, da administração da Universidade, deu voz ao desânimo que se vive. “É este o apoio dado à 3ª idade? Há um grande problema de solidão e isolamento nesta faixa etária e estão a tratar-nos de forma inadmissível”, afirmou, realçando que a instituição fomenta “um ambiente gerador de estabilidade entre os alunos”.
O Observador tentou obter uma reação por parte da câmara, mas a autarquia remeteu todas as respostas para amanhã, no decorrer da sessão pública, que será presidida por Fernando Medina e onde a UITI fará uma intervenção.
“Já gastámos mais de 50 mil euros em obras”
A UITI está instalada no número 85 da Rua das Flores, mesmo virada para o Largo Barão Quintela, onde a “Verdade” de Eça de Queiroz, espreita. Defronte, o Palácio Quintela-Farrobo, classificado como monumento nacional e ao lado um edifício quinhentista já com projeto na Câmara para ser transformado em Hotel. Os Bombeiros Voluntários de Lisboa, que antes ocupavam um outro edifício no largo, também vão ter de se adaptar a umas novas instalações devido à ampliação de uma unidade hoteleira que está a ocorrer no antigo quartel.
O primeiro andar do edifício pombalino, de dois andares, classificado como património municipal, foi cedido à Universidade em 1977. Foi nesse ano que Celeste e Herberto de Miranda criaram o projeto de apoio à terceira idade, pioneiro em Portugal e um dos primeiros do mundo. Mais tarde criaram uma Fundação que, ao longo dos anos, assumiu sempre as despesas inerentes à presença da UITI naquele edifício. “Para além da cedência, nunca tivemos qualquer apoio da Câmara. No total já gastámos mais de 50 mil euros em obras que fomos fazendo para melhorar as condições”, sustentou o reitor.
Destacou ainda que vinha a estabelecer contactos com a autarquia no sentido de poder vir a ampliar o espaço, de forma a receber ainda mais alunos. “Todos os anos temos de dispensar matrículas porque não temos espaço. Há mais de duas décadas que pedíamos à Câmara a utilização do segundo andar do prédio, de forma a podermos acolher mais alunos e melhorar a oferta”, continuou, revelando que acreditava que essa cedência iria acontecer em breve.
Num ofício datado de 1995, essa possibilidade chegou a ser garantida por João Soares, na altura presidente da Câmara de Lisboa, à UITI. “O segundo andar estava ocupado pelos bombeiros e demoraram a retirar as suas coisas e fomos esperando. Agora estávamos à espera que a câmara nos autorizasse a começar as obras de requalificação. Aliás, os nossos contactos estavam a ser feitos nesse sentido, uma vez que o prédio tem alguns problemas de segurança que nós queríamos ver suprimidos, mas agora fomos surpreendidos”, sublinhou o reitor, reconhecendo que há obras que têm de ser feitas para melhorar a segurança e mobilidade dos utilizadores, mas confidenciando que nas “negociações” com a edilidade se disponibilizou até para custear a requalificação, de forma a conseguir manter a Universidade naquele edifício: “Na altura foi-nos dito que isso até seria uma boa ideia, mas agora mudaram o discurso”.
“Se a universidade for para cascos de rolha eu não vou”
A saída da UITI da Rua das Flores era o assunto do dia quando o Observador esteve nas instalações da Universidade. Maria do Rosário e Maria Teresa, são colegas na aula de cultura musical. Nesse dia, a indignação tomava conta dos seus discursos e insistiam em levantar a voz contra a decisão da câmara. “Eu estou aqui para me manter ativa. Trabalhei desde os 18 anos e ao fim de 40 anos não me apetecia ficar em casa a limpar o que está limpo. Esquecem-se que os velhos também já descontaram e não vão comer nada de ninguém. Se a universidade for para cascos de rolha, eu não vou”, atirou de pronto Maria do Rosário de 66 anos, antiga funcionária pública, que foi avançando as palavras que iria dirigir a Fernando Medina se o encontrasse: “Se visse o presidente da Câmara perguntava-lhe se a mãezinha dele ainda estava no ativo e o que é que ela gostava de fazer. Mas eu espero bem nem sequer o ver à frente”, revelou, baixando a voz com tristeza. “Para mim estar aqui faz-me tanta falta como beber água”.
Ao subir as escadas de madeira que dão acesso ao primeiro andar, onde estão a maioria das salas de aula, deparamo-nos com o lema da Instituição, da autoria da fundadora Celeste Miranda: “Dá à UITI o que sabes e aprende o que quiseres”. Avançando pelos corredores exíguos, abre-se porta a porta, disciplina a disciplina e em comum uma coisa: salas cheias.
Empurrando uma velha porta de madeira encontramos lá dentro um grupo sorridente. “Logo agora que eu ia pedir para começarem a fazer caretas”, diz a professora Diana Tavares, professora de Psicologia positiva. Nesse dia a aula era dedicada ao riso e as gargalhadas eram obrigatórias no exercício. “São pessoas ativas e muito curiosas e contrariam as teorias de que os idosos se isolam e são pessoas tristes. Aqui sentem-se muito motivadas e isso é de extrema importância numa sociedade onde a exclusão dos idosos é realmente um problema”, salientou, encolhendo os ombros sobre a eventual saída da escola do edifício. “O problema é que muitos deles não vão conseguir apanhar dois ou três transportes, para além do dinheiro que não possuem para esses passes”, destacou.
Da janela vê-se um jardim, praticamente ao abandono, onde os Bombeiros Sapadores de Lisboa, vizinhos da UITI e que também estão de partida para outras instalações, depositam algum material inativo. “É uma pena estar assim, podíamos aproveitar aquele espaço para fazer ginástica e até ter as aulas de pintura no verão”, aponta uma aluna.
A UITI conta com quase 800 alunos, dos 45 aos 96 anos. Como é uma Universidade de cariz privado, recebe alunos não só da capital, mas de todo o lado. “Temos pessoas quem vêm da margem Sul, de Vila Franca de Xira, do Cartaxo, de Cascais… Temos cá alunos cujos pais também andaram cá. É impressionante a nossa história”, referiu Stela Tavares, destacando o papel da instituição junto da população idosa: “Temos aqui muitos órfãos de filhos vivos. Muitas pessoas vêem esta universidade como uma casa”.
Na sala seguinte a porta perra dá a conhecer um grupo de artistas no atelier 2 . A aula é de pintura e o desafio é recriar um animal com as indicações da professora Ana Martinez. “Nariz pequeno, orelhas grandes, mãos pretas, belos bigodes, olhos pequenos”, está escrito no quadro. Sem tremer a mão, uma aluna aplica-se quando alguém espreita e diz: “Mas estás a desenhar um homem, não é um animal. E está nu, tu não tens vergonha?”. A resposta chega com uma gargalhada:” Eu? Nenhuma. Um animal…ora um homem é um animal”, riem-se as duas, na sala apertada, nesse dia com 11 pessoas de pincel na mão, mas onde as cadeiras quase não se mexem de apertadas que estão entre as mesas.
Cada aluno paga 105 euros, por ano, com seguro, e pode escolher entre um leque de mais de 50 disciplinas. Funciona todos os dias da semana e cada um faz o seu próprio horário, de acordo com as matérias que mais lhe interessam. E há de tudo um pouco: desde História, Pintura, Línguas, Literatura, Música, Trabalhos Criativos ou Dança. Os professores são 77, todos voluntários. A carpintaria, com o reconhecido mestre Ilídio Carapeto, é das disciplinas que tem mais sucesso e os navios minuciosos que saem daquela aula estão até em exposição em museus.
Só naquela hora decorrem, ao mesmo tempo, cinco aulas, cada uma de 60 minutos. Através de uma entrada improvisada, onde geralmente os mais fortes até têm mesmo de entrar de lado, segue-se para a aula de Comunicação e Cultura do Séx XXI. “Aqui também têm lugar as aulas de música”, explica uma aluna apontando um antigo piano de cauda encostado ao canto, por não ter espaço para se ver. A sala está cheia e atrás do piano uma porta: “É a biblioteca, mas só pode ser usada quando não há aulas para não se interromper”, revelam.
No Atelier 1 decorre ainda a aula de Teoria de Arquitetura, dada pelo arquiteto Manuel Francisco. “Deixei de ter trabalho em 2008, devido à crise fechei dois gabinetes de arquitetura. De repente vi-me em casa, um pouco desorientado. Tive conhecimento da UITI e cheguei cá, primeiro enquanto aluno. Depois surgiu a oportunidade de ensinar e gosto tanto de ensinar. Também sou professor numa universidade, mas ensinar os mais novos é muito diferente, porque às vezes estão completamente desinteressados. Aqui não, estes alunos gostam de aprender e debater os assuntos”, salientou, lamentando o fim anunciado da instituição:
“Passando a escola para outro lado, vão matá-la. As pessoas vivem numa exclusão social muito grande, não faz sentido querer acabar com projetos como este, que ajudam as pessoas, que as fazem viver “.
Um dos alunos, Henrique Silva, de 75 anos, endureceu o discurso: “A parte financeira está a sobrepor-se ao interesse dos lisboetas. É uma vergonha”, disse o antigo técnico de aeronáutica, que deu conta da importância da universidade com um exemplo: “Se esta gente ficar em casa vai acabar por gastar mais dinheiro do Estado. Porque vai ficar inativa, logo, mais doente e vai parar aos hospitais”, sorriu: “Isto é pura verdade”.
Carlos Guedes é dos alunos mais antigos e frequenta a universidade há 22 anos; tem 83. “O ambiente é extraordinário, o convívio, já fiz muitos amigos cá, muitos até já partiram”, diz o aluno que vem de Belém todas as semanas para assistir a um par de aulas. “Outro sítio? Impensável. Isto já não é fácil andar aí de um lado para o outro”, realça.
Também Maria Ferreira, de 66 anos, se indigna com a mudança. “Temos de lutar para ficar aqui. As pessoas estão muito habituadas a este sítio e será muito triste se tiverem de ir embora”, afirmou, salientando a necessidade de “não ficar no sofá”. Emília Oliveira, de 62 anos, reformada por antecipação devido a artrite reumatóide, apoia a colega e não tem dúvidas: “Se for para outro sítio já não vou ter a oportunidade de ir, porque não posso gastar dinheiro em transportes. Eu quero sentir-me no ativo, sinto-me melhor aqui do que em casa, porque é tão bom estar sempre a aprender”.
De saída da aula de “trapologia”, onde se criam obras a partir de trapos, Manuela Lopes vai apressada para ir buscar os netos à escola: “Há tantos idosos sozinhos em casa e esta autarquia quer o quê? Que fiquemos fechados e não participemos da sociedade. É realmente uma tristeza”.
Manuela Pimenta é das alunas mais recentes. Reformou-se há poucos meses e como já conhecia a UITI não hesitou em inscrever-se imediatamente. “Assusta-me a inatividade. Será uma pena abandonarmos este espaço. Infelizmente o turismo está a prevalecer acima de tudo e, principalmente para a câmara, os turistas são mais importantes do que os próprios cidadãos”, contestou, analisando: “Passando a universidade para outro sítio, é matar o projeto, é matar a escola e isso não pode acontecer”.
Amanhã, quarta-feira, alunos e professores estão a mobilizar-se para se deslocarem à sessão pública da Câmara, onde o reitor se inscreveu para fazer uma intervenção e onde vai apelar à sensibilidade política para resolver o assunto. Apesar do pouco tempo que terá para intervir, cerca de três minutos, tentará explicar ao presidente da Câmara a importância da instituição para a cidade de Lisboa. Em massa estarão os alunos da universidade para dar visibilidade ao problema.