“É mentira!”, “o senhor mentiu a esta câmara” ou “o senhor mentiu aos portugueses”. Estas não eram frases recorrentemente ouvidas no Parlamento. Mas agora são. Sobretudo vindas da líder do CDS, Assunção Cristas, que esta quarta-feira, no último debate quinzenal, se juntou ao PSD para fazer coro da tese de que o Governo, e em particular o ministério das Finanças de Mário Centeno, mentiu quando escreveu ao Parlamento a dizer que não tinha sido feito um acordo prévio com António Domingues para este aceitar presidir à Caixa Geral de Depósitos.
António Costa, que negou prontamente a acusação de mentira, notou a frequência e a “ligeireza” com que a acusação tem sido feita pela presidente do CDS. E a verdade é que longe vão os tempos em que os deputados se poupavam nas palavras e optavam por termos como “inverdades” em vez de irem diretos à “mentira“. Só na atual sessão legislativa Assunção Cristas já repetiu a acusação pelo menos quatro vezes. No debate desta semana, o PSD evidenciou que as notícias do dia demonstravam que o ministro das Finanças tinha “mentido sobre o processo” da CGD e, no final de janeiro, também tinha acusado o Governo de mentir sobre a Escola Alexandre Herculano, no Porto.
Nessa ocasião, porém, o PSD fê-lo por escrito, à margem do frente a frente com o primeiro-ministro. O número é mais usado pela presidente do CDS. Tanto que, pelo Natal, Assunção Cristas não precisou de pensar muito sobre qual seria o presente mais indicado para oferecer a António Costa: um soro da verdade.
CGD: “Já se percebeu que Mário Centeno mentiu nesta casa”
É a novela do momento. Afinal, houve ou não um acordo prévio entre o Governo e António Domingues com as condições para aceitar presidir à Caixa Geral de Depósitos? O Governo isentou os administradores da Caixa dos constrangimentos salariais e da obrigação de declararem os seus rendimentos e património ao Tribunal Constitucional como garantia para aceitar assumir funções? O Ministério das Finanças mentiu ou não quando disse à comissão de inquérito à CGD que “inexistia” correspondência a apontar para essas condições?
No último debate quinzenal no Parlamento, na quarta-feira, PSD e CDS insistiram na questão. Começou o PSD, com Luís Montenegro a lançar o desafio: o primeiro-ministro sabia ou não do acordo entre Mário Centeno e António Domingues? Depois, veio a acusação: “as notícias que vieram hoje a público demonstram que o ministro das Finanças mentiu sobre o processo”. Mais à frente, Cristas prosseguia, dizendo que Centeno “tem estado tão atrapalhado que já se percebeu que mentiu nesta casa”. “Em que me medida é que pode manter a confiança no ministro das Finanças?”, perguntava.
Na resposta, António Costa diria categoricamente que “o senhor ministro das Finanças não mentiu” e ainda viria a acusar a líder do CDS de “ligeireza”, por recorrer tantas vezes à acusação de “mentira“.
Depressa o caso subiu de tom e o deputado do CDS João Almeida viria a insistir na “quebra de verdade” de Mário Centeno (que depressa passou a “mentira“), dizendo mesmo que o ministro arriscava consequência penais por ter “mentido” numa comissão de inquérito.
Mário Centeno não mentiu sobre o acordo com António Domingues?
“Acordo está assinado? O senhor mente!”
Foi a vez em que Assunção Cristas usou um tom mais agressivo para fazer valer o seu ponto: que António Costa mentia quando dizia que o acordo de concertação social, que previa a descida da TSU como compensação para o aumento do salário mínimo, já estava assinado por todos os parceiros sociais.
— “O acordo de concertação social já está assinado por todos os parceiros e o Governo?”, perguntava a líder do CDS.
— “Sim”, respondia o primeiro-ministro.
Então Cristas insistia: “Houve alguma assinatura escondida entre a uma da tarde e as três? Estive com dois parceiros esta manhã e nenhum tinha assinado o acordo. Quer manter a sua resposta?”
É então que António Costa responde com mais cautela. “Bom, combinámos que não haveria nenhuma cerimónia [pública] e que o decreto circularia e todos assinaríamos, portanto está assinado”.
É o bastante para Cristas concluir: “O senhor mente! É mentira! O senhor acabou de mentir a esta câmara, o senhor mentiu. Começamos a ficar habituados, o senhor mente sempre que aqui vem e acabou de mentir objetivamente. O acordo não está ainda assinado”. E ainda foi mais longe: “A sua palavra não vale nada. A sua assinatura não vale nada”, disse.
Na verdade, a “mentira” era apenas um diferendo horário. É que o acordo não estava ainda assinado por todas as confederações patronais e pela UGT à data do debate na Assembleia da República, mas estava fechado e, não havendo um momento próprio e solene para as assinaturas, a formalização das rubricas era apenas uma questão de tempo.
Cristas acusou Costa de mentir: acordo com parceiros estava assinado?
Lei permitia vasculhar contas dos portugueses? “Isso é mentira”
Em setembro, no início da sessão legislativa, a polémica do momento era outra. O Governo socialista tinha aprovado um decreto-lei que previa a obrigação de a banca comunicar ao fisco todos os saldos bancários acima dos 50 mil euros. A medida aplicava-se a residentes com poupanças em Portugal, não residentes com poupanças em Portugal (portugueses emigrados ou estrangeiros com contas cá) e a residentes com dinheiro lá fora.
A questão era que o gabinete de Mário Centeno invocava dois acordos internacionais para aplicar a medida como forma de apertar o cerco à fraude e evasão fiscal, mas o CDS defendia que essas diretivas internacionais não se aplicavam aos portugueses com contas em Portugal. Logo, dizia que o Governo estava a querer aceder às contas dos portugueses por sua iniciativa.
Perante os argumentos de António Costa, no frente a frente quinzenal, Assunção Cristas acabaria por acusar o primeiro-ministro de estar a dizer uma “mentira objetiva”. “Com o escasso tempo que tenho é impossível desmontar todas as suas mentiras. Mas na verdade já disse várias. Uma delas é dizer que a diretiva nos obriga a vasculhar as contas de todos os portugueses com 50 mil euros. Isso é mentira. Objetivamente mentira. Mentira objetiva”, disse.
A verdade, como o Observador apurou neste fact check, é que o Governo socialista não se estava a limitar a cumprir os acordos internacionais celebrados pelo Governo PSD/CDS quando pretendia ter acesso a informação sobre saldos bancários superiores a 50 mil euros de cidadãos portugueses residentes em Portugal, mas o Ministério das Finanças nunca se tinha escudado nesse argumento. No entendimento do Executivo socialista foi sempre uma questão de constitucionalidade: se a medida se aplica a uns cidadãos, tem de se aplicar aos restantes.
Cristas vs. Costa: Governo “mente” sobre reforço dos poderes do fisco?
PSD acusa por escrito: “O primeiro-ministro mentiu”
No final de janeiro, novo debate quinzenal com o primeiro-ministro, nova acusação de mentira. Desta vez feita pelo PSD, mas por escrito. Depois de o tema do encerramento, por falta de condições, da escola Alexandre Herculano, no Porto, ter dominado o debate, o grupo parlamentar do PSD fez chegar à bancada de imprensa um comunicado onde acusava o primeiro-ministro de “mentir“.
No debate, o primeiro-ministro tinha dito que a Alexandre Herculano era uma das 39 escolas cujas obras estavam adjudicadas em 2011 e que tinha sido “anulada quando o doutor Pedro Passos Coelho chegou ao Governo”. Mas segundo o PSD, o anterior Governo tinha “garantido as condições para a realização da obra, através de fundos comunitários”, ao contrário do que dizia António Costa. No comunicado, o PSD deixa claro que “as declarações do senhor primeiro-ministro são falsas“, uma vez que o anterior governo tinha reservado para essa obra “seis milhões de euros, assumindo o Governo 15% desta verba”.
Perante isto, para o PSD, o Governo de António Costa “chantageou os municípios impondo-lhes o pagamento de metade do valor que deveria ser o Governo a pagar”, pelo que considera que o António Costa “omitiu a verdade, não assumiu as suas responsabilidades e utilizou o Parlamento para enganar país, alunos e professores da Escola Alexandre Herculano”.
O tom foi duro, ainda que por escrito, merecendo depois um desmentido do gabinete do Governo, também por escrito, a assegurar que o primeiro-ministro “não mentiu no Parlamento”. Depois foi a vez do presidente da câmara do Porto sair em defesa do PSD, desmentindo o Governo: o ministério queria que a autarquia do Porto pagasse o total do valor remanescente.
Quem precisa de um soro da verdade?
Com tanta “mentira“, quem precisa de um soro da verdade? Assunção Cristas achou que o primeiro-ministro precisava. E foi por isso que, pelo Natal, no último debate antes da época festiva, levou uma caixa com presentes para António Costa: um par de óculos, um soro da verdade e um pacote com as propostas que o CDS apresentou ao longo do ano.
Os óculos porque “o senhor primeiro-ministro às vezes vê as coisas desfocadas e tudo muito cor de rosa”, as propostas do CDS para Costa ter “um pouco de política positiva”, e um soro da verdade para “olhar de forma objetiva” para as “avaliações feitas ao anterior Governo e não ter a tentação de fechar relatórios nas gavetas”, numa referência ao relatório da OCDE sobre reformas laborais que o Governo estava a ser acusado de esconder.
Apanhado desprevenido, António Costa entrou na brincadeira e, depois de ter apelidado a líder centrista de Mãe Natal, sugeriu oferecer-lhe um retrovisor no dia de Reis, para olhar melhor para o passado.
Troca de prendas no Parlamento: óculos, soro da verdade e um retrovisor
Quem te viu e quem te vê. Da “inverdade” à “mentira” no hemiciclo
Quem viu o Parlamento e quem o vê. “Na última legislatura, ou até há mais tempo, foi feito um apelo para que os deputados tivessem contenção nas palavras, porque se pode pode dizer o mesmo sem usar expressões ofensivas”, lembra ao Observador o deputado e secretário da Mesa da Assembleia da República Duarte Pacheco, recordando que costumava ser mais frequente usar “eufemismos” para a “mentira” do que a própria palavra “mentira“. “Não está a dizer a verdade” ou “o que diz não corresponde à verdade” ou ainda — e esta expressão fez sucesso durante algum tempo — “é uma inverdade” são alguns exemplos.
Foi o que começou por fazer o deputado do CDS João Almeida esta quinta-feira quando, em conferência de imprensa, acusou Mário Centeno de “quebra de verdade”. Repetiu várias vezes variantes dessa formulação, até que os jornalistas lhe perguntaram porque fazia questão de falar em “quebra da verdade” e não em “mentira“. Mas o deputado não hesitou e depressa disse que não tinha qualquer problema em dizer que “sim, o ministro mentiu“.
A expressão entrou no léxico político em força e Duarte Pacheco arrisca explicar porquê. “Estamos num tempo em que se não se for contundente os próprios media e a opinião pública dizem que o debate foi morno, e isso acaba por induzir os agentes parlamentares a usarem mensagens mais duras para serem ouvidos”, afirma. Essa é a “vantagem” imputada aos deputados, mas também há problemas e riscos. “Com expressões ofensivas recorrentes o debate fica mais crispado e isso prejudica a possibilidade de consensos a médio prazo”, acrescenta.
Duarte Pacheco, que é presença assídua nas conferências de líderes enquanto secretário da Mesa, recorda que o apelo à moderação de linguagem é recorrente entre os presidentes da Assembleia da República. Aconteceu por exemplo na legislatura passada com a maioria PSD/CDS. Os partidos de esquerda, na oposição, acusavam sistematicamente os partidos da maioria de direita, e o Governo, de “roubo”, e de “roubarem” os portugueses. A presidente da AR alertou então várias vezes para a necessidade de “moderar” o tom. Mas a verdade é que não há diretivas nem regras escritas quanto a isso. E, de resto, “as pessoas são livres de dizerem o que quiserem”.
Quanto muito, sublinha o ex-deputado do CDS José Ribeiro e Castro ao Observador, existe uma espécie de “código de conduta” tácito entre bancadas para a linguagem “não extravasar”. “Na política, acusar o outro de mentir faz parte do dia a dia, mas existe a convicção de que usar essa linguagem mais ofensiva no plenário, que é transmitido na televisão, corre o risco de passar a mensagem de que o Parlamento é um circo, e isso mancha o debate político”, diz.
Para Ribeiro e Castro, que se recorda dos tempos em que as “inverdades” eram mais comuns do que as “mentiras“, porque “usar o verbo mentir era considerado reprovável”, o maior problema reside no risco de a acusação de mentira, nua e crua, ser sentida como ofensiva e isso proporcionar réplicas mais ofensivas ainda. “O debate pode sair do controlo”. Nas próximas semanas a mentira não vai sair da agenda. Mário Centeno mentiu?