Título: “The Dew of Little Things”
Autor: Carlos Lobo
Editor: Éditions Loco
The Dew of Little Things (Éditions Loco, 2016), o quinto fotolivro do fotógrafo português Carlos Lobo, vai buscar o título ao poeta libanês-americano Kahlil Gibran (1883-1931), aos versos finais do poema “Friendship”, publicado em The Prophet (1923): “E que, na doçura da amizade, haja risadas, e prazeres compartidos./ Pois no orvalho das pequenas coisas/ o coração acha a sua manhã/ e refrigério” (trad. minha). Contraste mais desolador parece não ser possível traçar entre a singeleza terna destes versos e as marcas dos conflitos armados no território fotografado por Lobo: a paisagem urbana de Beirute e Tripoli, no Líbano, em meados de 2011.
Ao folhear o livro pela enésima vez, tentando ver para lá do reconhecível (como as lições aprendidas com Friedlander, Eggleston, ou Stephen Shore; ou a semelhança assumida entre a capa do livro e a de Lago, de Ron Jude), detenho-me no trabalho que faz um título. Na página pessoal do autor, várias das imagens usadas na construção deste livro figuram na série intitulada “Still There” (‘continua lá’), o que sugeria a perspectiva de um regresso: uma Beirute revisitada, por assim dizer; ou antes, a confirmação de que o Líbano ainda não fora pelos ares. Mas o título The Dew of Little Things modifica tudo. Deixamos de estar perante um documento topográfico (aliás, extraordinário) de duas cidades libanesas entre guerras; somos antes instados a considerar as hipóteses reservadas a uma fatia da humanidade quanto a participar na experiência da amizade, tal como descrita por Gibran; somos instados a considerar as condições de possibilidade das pequenas coisas, que redimem um pouco a demência das grandes coisas, em torno da qual gira a história do mundo.
A deambulação de Lobo detém-se nas óbvias marcas da guerra deixadas quer pelo conflito entre Israel e o Hezbollah (2006), quer ainda, quem sabe, pela guerra civil, que consumira o país ao longo de quinze anos (1975-1990). Mas, vendo bem, o que se qualifica como “marcas de guerra”? Para lá da arquitectura cravejada; dos edifícios deixados a meio; das estátuas esburacadas; dos cartazes e dos grafitos belicosos; dos tanques estacionados lado a lado com automóveis, como se se tratassem da minivan que a família leva de férias; para lá da imagem rasgada do aiatolá Khomeini; das escoltas privadas; para lá da militarização do quotidiano nos seus detalhes; o que conta, afinal, como “marcas de guerra”? As imagens de Lobo sugerem uma correlação entre as expectativas de entendimento e prosperidade, e a crueza e o improvisado das infraestruturas e do tecido urbano, assim como uma correlação entre o seu enquistamento irremediável e a naturalização de um modo de vida hiper-defensivo. Marcas da guerra são, assim, o ambiente de perpétuo cessar-fogo, e o equilíbrio precário de quaisquer tentativas vislumbráveis de normalidade. As estantes vazias de uma livraria desmantelada, logo no começo do livro, são um triste sinal disso mesmo.
Fotografado em apenas um par de semanas entre as cidades de Tripoli e Beirute (em grande formato e, ocasionalmente, em 35mm), The Dew of Little Things revela um período de elevada concentração de um fotógrafo em pico de forma. Outra explicação não existe para que, num trabalho realizado em filme, e em tão curto espaço de tempo, com tão pouca margem de erro, as intuições de Lobo sejam tão precisas e especificadas de maneira tão coerente ao longo deste conjunto. Claro que tal precisão de intuições vem a ser reforçada e afinada por um trabalho posterior de edição (que corresponderia ao seu trabalho de doutoramento). Mas não se pode editar o que não está lá.
Além da vocação topográfica do livro, e do talento do autor em explorá-la, o questionamento constante da possibilidade das pequenas coisas é orientado por uma atenção a particulares. Veja-se o arranque do livro, do particular para o geral, relacionando o azul de uma porta com o azul de uma caixa vazia na livraria desocupada; e de seguida as estantes vazias da mesma livraria com as concavidades da estrutura e as fundações de um edifício interrompido; a que se segue um gradual regresso do geral ao particular — definindo um princípio de leitura para o resto do livro. Intercalando sequências de analogias formais e/ou cromáticas com súbitas mudanças de assunto, e alternado os modos de aproximação (Lobo ora captura conjuntos de coisas — ou antes, coisas vistas sob conjuntos; ora recorta particulares), assim como imagens de interiores e de exteriores, The Dew of Little Things define um ritmo de interpretação: abranda a contemplação de uma realidade da qual temos uma sobressaturação visual, destituída de significado. Organizando-se em torno de relações entre formas e estruturas e unidades cromáticas a diferentes escalas, e em diferentes tipos de superfícies, tem na inteligência da composição um instrumento para revelar, ou pelo menos para sugerir, a instabilidade latente que, ironicamente, tudo parece sustentar.
Onde encontrar “o orvalho das pequenas coisas” quando a volatilidade é a única certeza a longo prazo? Ajuda dizer que na véspera do regresso de Carlos Lobo, manifestaram-se em território libanês os primeiros focos de infiltração do conflito na Síria. Deixando em aberto a possibilidade de poder ir tudo pelos ares enquanto não estivermos a ver, o livro despede-se do Líbano com uma imagem de um Mediterrâneo agitado, precedida por uma imagem de três cadeiras de plástico mal equilibradas contra duas paredes e uma porta, que pressentimos poder abrir a qualquer instante. Eis uma imagem perfeita da instabilidade latente: uma mise en abyme do livro, do Líbano contemporâneo, da história de toda uma região, e do momento específico deste mundo preso por arames.