Título: “O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana”
Autor: Mário de Carvalho
Editora: Porto Editora
Páginas: 294
Normalmente, um romance de juventude interessa por o seu autor já a ter passado. Os primeiros romances de Balzac são uma anedota diante da Comédia Humana, o mimado e despótico Jean Santeuil é uma bússola curiosa para entrar no Tempo Perdido e os “Rochas”, que Miguel Torga ainda assinou com o verdadeiro nome, são raridades que aproveitam muito mais ao bolso do coleccionador do que à leitura. Curiosidades académicas, retalhos ainda não desenvolvidos de uma personalidade literária, indicações potenciais de uma grandeza futura, os romances de juventude andam sempre a reboque de uma obra já bem sazonada.
A poucos se pode chamar romance de juventude por terem o interesse próprio da mocidade e não o interesse de serem o primeiro degrau numa escada até ao Parnaso. Este Livro Grande de Tebas Navio e Mariana, de Mário de Carvalho, tem contudo um verdadeiro encanto juvenil. O próprio Mário de Carvalho, num prefácio já com uns anos, reconhece-o como um romance meio catraio e aponta-lhe vários erros. De facto há muitas frases embuchadas com excesso de adjectivos, de facto há construções frásicas um nada pretensiosas, de puro efeito, de facto há quase uma sofreguidão pela originalidade poucas vezes bem-medida. Acontece, porém, que a grandeza de um escritor também se vê pela grandeza das suas intenções. E estas, à boa maneira da juventude, são neste livro claras e imensas.
A tentativa de aproximar a estrutura gramatical portuguesa da latina, trocando a ordem das palavras sempre que os casos o permitem, explora de facto uma possibilidade da língua: a manutenção do sentido verdadeiramente liberta da forma. A substantivação de adjectivos e a adjectivação de substantivos, embora tenha um tanto daquele ridículo piedoso que reconhecemos nos pecadilhos de juventude vistos à distância, também tem a arrogância animosa de quem se sente capaz de tudo; capaz de revolucionar a língua que conhece, ama e faz questão de exibir, capaz de fundir a História Universal num livro, transformar uma novela pícara num conto Kafkiano e resgatar ao vernáculo mais clássico as escoras para uma língua nova.
O encanto do livro está precisamente no seu falhanço: Mário de Carvalho sabe o que quer – tudo; entrar com confiança de quem consegue, cheio de brilhos de escritor, e o que comove é ver como está errado. Mário de Carvalho luta como um inocente, quer domesticar a Humanidade inteira e está convencido de que vai conseguir açaimá-la num livro. Para o provar, veja-se a dimensão dos temas: das três partes, Tebas, Navio e Mariana, temos quase três géneros diferentes. A primeira trata da busca por uma cidade encantada, Tebas, que cruza tempos bíblicos e tempos modernos, sábios medievais e guerreiros clássicos, um tanto à moda da Torre de Barbela. É um relato cheio de peripécias, no passo de Fernão Mendes Pinto, em que cabem situações picarescas, contos dentro de contos com o ressaibo moral das histórias Orientais, e aparições em catadupa do mais ilustre panteão da Humanidade.
Na segunda parte, trata da argonáutica experiência do narrador, embarcado numa espécie de nave dos loucos, cheia de diálogos semi-filosóficos com marinheiros tão idiossincráticos quanto se possa imaginar, abundante em visões e derivações surrealizantes. Na terceira, por fim, da dispersão histórica à confusão geográfica, chegamos a um cenário habitado apenas por Mariana, uma personagem perturbadora, que poisa o romance frenético num fim contemplativo, de dureza psicológica a que a multiplicidade de elementos das outras partes já não permite escapar.
É muito, é demais, nem tudo se percebe e nem tudo parece bem percebido. A fronteira entre as ideias vulgares ataviadas de manhas estilísticas e as ideias engraçadas é ténue; porém, como se disse, nem é a grandiosa síntese da Humanidade nem os raciocínios subtis que dão força ao romance. O que verdadeiramente o alimenta é a grandeza das suas ambições fracassadas, que cria uma corruptela de Universo com muita graça.
O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana lembra, em tudo, um presépio. No colorido do ambiente, na representação do mundo buliçoso, confuso, na possibilidade de nos perdermos em cenas marginais, na coabitação despreocupada de mundos e tempos diferentes, nos figurinos que juntam pormenores de mestre e defeitos de amador, na inocência e na forma ora tosca, ora verdadeira, ora humilde, ora ambiciosa, como o Homem tenta representar algo maior do que ele. No caso do presépio, representar Deus; no caso de Mário de Carvalho, as suas ambições. Em caso nenhum será uma representação fiel e acabada; mas do jovem Mário de Carvalho não se pode dizer que fosse um mau escritor – apenas que não estava à altura de si próprio.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.