Título: “Bairro da Lata”
Autor: John Steinbeck
Editora: Livros do Brasil
Páginas: 168
Preço: 14,40€
As primeiras linhas de Bairro da Lata (publicado originalmente em 1945 com o título ‘Cannery Row’) de John Steinbeck superam qualquer descrição que se possa fazer do mesmo romance. Apesar de aparentemente servirem apenas para apresentar o bairro californiano de Cannery Row, que Steinbeck bem conhecia, estas linhas acabam por sintetizar com exactidão todas as características principais do romance, quer as mais nítidas quer aquelas que Steinbeck não tornou tão explícitas:
“Cannery Row, em Monterrey, na Califórnia, é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, uma tonalidade, um vício, uma nostalgia, um sonho. Cannery Row é acumulação e desperdício; lata, ferro, ferrugem e gravetos; pavimentos escavados, terrenos de urtigas e amontoados de cordame; fábricas de enlatar sardinhas de chapa ondulada, cabarés reles, restaurantes, bordéis e pequenas mercearias atravancadas; laboratórios e albergues. Os seus habitantes são, como disse o homem certa vez, «pegas, alcoviteiras, batoteiros e filhos da mãe», com o que pretendia dizer «toda a gente». Tivesse o homem espreitado por outra frincha e talvez dissesse: «Santos e anjos, mártires e homens bons», e significaria a mesma coisa.” (p.9)
O bairro de Cannery Row, tal como o nome indica, é um amontoado de coisas e aquilo que destas sobra, outro amontoado de coisas. Neste romance, Steinbeck centra-se, sobretudo, no segundo destes ‘amontoados’, o amontoado das sobras. Da vida das fábricas que “sussurram, vibram e grunhem até ao último peixe estar cortado, cozinhado e enlatado” (p. 10), Steinbeck quase nada diz, especialmente em comparação com o que diz sobre aqueles “homens e mulheres a pingar, estafados, fedorentos (…) derreados pelo monte acima a caminho da vila” (p. 10) e aqueles que, ainda que não sejam operários fabris, vivem dos desperdícios materiais e espirituais daquele lugar. Perante isto, um leitor desprevenido poderá achar que está construído o cenário perfeito para um romance neo-realista. Diga-se, peremptoriamente, que, apesar de alguma crítica ter defendido essa ideia, sempre de formas muito pouco arrazoadas, Bairro da Lata não é um texto neo-realista, e que isso se deve ao facto de Steinbeck espreitar Cannery Row por várias frinchas diferentes e não apenas por uma de dimensões muito estreitas (outra crítica, um pouco mais sensata, viu neste texto, na senda de William Empson, mais uma versão da literatura pastoril). Quando Steinbeck afirma que Cannery Row “é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, uma tonalidade, um vício, uma nostalgia, um sonho” não está somente a escrever uma frase bonita para captar a atenção do leitor acabado de chegar ao livro; Steinbeck está a ser preciso, isto é, a ser preciso de acordo com aquilo que Cannery Row é para si. A sua descrição daquele lugar resulta de perspectivas diferentes e, por isso, é múltipla e, por vezes, paradoxal. Claro está que isto não é alheio ao facto de Steinbeck considerar que o objecto descrito exibe pujantemente uma natureza paradoxal, o que, aliás, tenta frisar ao longo de todo o texto. A consciência de que a sua tarefa descritiva tem de ser executada com subtileza revela a sua crença de que as características do objecto são tão pungentes na sua aparição quanto frágeis no momento em que são transcritas:
“Como emprestar aqui vida ao poema, ao fedor, à estridência, à gradação de luz, à tonalidade, ao vício, ao sonho? Quando se coleccionam animais marinhos encontram-se vermes espalmados que de tão frágeis se torna impossível colhê-los intactos, porque ao tocar-lhes se partem e desfazem. É preciso deixar que se arrastem e deslizem por si próprios para uma lâmina e dirigi-los então cuidadosamente para dentro do frasco de água do mar. Será esse talvez o processo para escrever este livro – abrir a folha e deixar que as histórias deslizem para ela por si próprias.” (p. 10)
A ambição de recolher sem tocar, comum a tantas escolas artísticas, acaba por revelar-se irrealizável e Steinbeck sabe que neste processo tem de, pelo menos, transportar um mundo (um bairro californiano) para dentro de outro mundo (o da linguagem escrita). Sabendo que nenhuma história desliza por si própria para o papel, o autor sabe que lhe resta encontrar a melhor forma de fazer deslizá-la como se parecesse que desliza por si própria. É neste ponto que Steinbeck se revela exímio, pois foi capaz de perceber que o seu texto tinha de emular a natureza múltipla e paradoxal que é característica do bairro Cannery Row. O seu romance é, assim, um poema, um fedor, um vício, uma nostalgia e um sonho, repleto de putas que são anjos, de batoteiros que são mártires e de filhos da mãe que são homens bons. Tente-se, então, compreender em que consiste a mestria de Steinbeck.
Nas primeiras páginas do romance, o autor tenta exaustivamente retratar Cannery Row como um lugar de acumulação recorrendo a uma superabundância de enumerações, como, aliás, pode ser visto desde logo nas frases já citadas e a que se podem juntar outras:
“Da vila surgem italianos, chineses, polacos em torrente, homens e mulheres de calças, casacos de borracha e aventais de oleado. Chegam correndo para limpar, cortar, escolher, cozinhar e enlatar o peixe. A rua toda rumoreja, geme, guincha, trepida” (p. 10).
Como se pode ver, à enumeração de nacionalidades, segue-se uma enumeração de roupas, uma enumeração das actividades que se realizam nas fábricas e ainda a enumeração das acções realizadas por uma rua personificada. Contiguamente, a loja de Lee Chong vende “roupa, comida, tanto fresca como enlatada, álcoois, tabaco, apetrechos de pesca, máquinas, barcos, cordame, bonés, costeletas de porco (…)”. Estas vastas enumerações têm o propósito de mostrar que este bairro é um lugar onde, lembrando uma rábula dos Monty Python, existem coisas em cima de outras coisas. A quantidade significativa de adjectivos usados sequencialmente parece também servir o mesmo propósito, como, por exemplo, na caracterização da casa de alterne como “uma casa de prazer, decente, asseada, honesta e recatada” e “clube simpático, respeitável, edificado, mantido e sujeito à disciplina de Dora, a qual (…) se tem feito respeitar por pessoas inteligentes, cultas e humanas”. Para além disto, a ideia de acumulação é ainda reforçada pela explicação dos momentos de crise e de prosperidade de Cannery Row, uma vez que Steinbeck recusa qualquer tentativa de explicação lógica ou mística para a ocorrência desses momentos, preferindo mostrar que estes têm origem e fim numa sucessão de acontecimentos desconexos.
Esta espécie de loquacidade quase estridente surge, porém, apenas em alguns capítulos do livro, pois outros há em que desaparece totalmente. Estes últimos parecem querer evidenciar o lado poético de Cannery Row, tentando descrever num estilo bem diferente certas gradações de luz, certas tonalidades, alguns momentos de nostalgia e sonho. O quarto capítulo (p. 25), aquele em que se narra determinado momento “à tardinha, mesmo ao anoitecer” em que “acontecia uma coisa singular em Cannery Row”, é um bom exemplo para constatar em que consiste esta alteração estilística. A singularidade referida parece dizer respeito ao aparecimento diário da misteriosa figura de um velho chinês, pois este aparecimento é central na composição deste episódio. Todavia, é a descrição da atmosfera de Cannery Row ao lusco-fusco que é singular na medida em que rejeita as características das descrições até aí usadas para retratar aquele sítio, parecendo-se até mais estilisticamente com o segundo capítulo (p. 18), onde considerações filosóficas (“A Palavra é um símbolo e um deleite (…) Então a coisa toma a forma de Palavra e volta de novo a ser Coisa, mas urdida e tecida em fantástico desenho”) se juntam a uma imagética faustosa (“Num mundo governado por tigres com úlceras, violentado por touros, revolvido por cegos chacais”).
Tal como estes dois capítulos, existem outros que parecem escapar a um retrato naturalista de Cannery Row e que, quando agrupados, parecem formar uma antologia das singularidades locais. Nalguns deles, Steinbeck exibe uma sintaxe e um vocabulário distintos daqueles que utiliza nos capítulos em que narra aquilo que se pode considerar a narrativa central do livro (o conjunto das peripécias à volta do Doutor e do grupo de Mack), chegando mesmo alguns desses capítulos a ser alegorias das virtudes, dos defeitos, das esperanças e dos ideais que são os alicerces daquele mundo.
Steinbeck parece querer dizer que a única maneira de mostrar a complexidade de Cannery Row, isto é, que este é um lugar composto por prosa (acumulação/desperdício) e poesia, é retratá-la através de estilos diferentes, num texto em que alegorias são concomitantes de uma trama simples narrada com o uso repetido de certos artifícios retóricos. Pode-se, talvez, ver um reflexo da imagem do movimento das marés neste processo narrativo. Tendo em conta que este é o fenómeno natural mais importante para a vida de Cannery Row e que Steinbeck apresenta uma espécie de relação mágica entre os homens e a Natureza (com contornos de um paganismo particular recorrente na obra de Steinbeck), esta ideia parece estar na génese da composição da harmonia existente entre os dois estilos mencionados. Este argumento, aliás, sai reforçado pela repetição de episódios (a tentativa de fazer uma festa, a festa falhada, nova tentativa de fazer uma festa, festa realizada) e pelo diálogo complexo que alguns capítulos aparentemente desconexos apresentam entre si (existe quem, abusivamente, defenda a existência de um padrão relativo aos capítulos que correspondem a números ímpares e outro aos capítulos que correspondem a números pares).
Não é só estilisticamente, contudo, que esta natureza oscilatória é representada, pois ela está presente na descrição de todas as personagens de Cannery Row, desde aqueles que são mais estranhos ao bairro, como o Doutor, “concupiscente como um coelho e carinhoso como ninguém” (p.30) e que “tem ajudado muita moça a sair de um embaraço para o meter noutro” (p.29), até aos nativos, como Mack, que angustiado pela percepção que tem dos seus vícios admite mesmo assim que não se livrará deles, preferindo ser repetidamente punido a emendar-se.
Embora Steinbeck faça algumas considerações sobre as possíveis reacções humanas ao ostracismo social a que estão sujeitos os habitantes de Cannery Row (segundo as quais, o homem ou se torna puro ou se torna ruim), nunca os apresenta como vítimas da sociedade. Mack e os seus amigos, por exemplo, são apresentados como marginais que se orientam apenas por ambições que se relacionam com comida, bebida e prazer e que falham quase todos os raros planos que fazem. No entanto, são simultaneamente classificados como sábios porque o seu modo de vida é a resposta certa para a pergunta:
“Pois que aproveita ao homem conquistar o mundo todo, e entrar na posse daquilo que conquistou, com uma úlcera gástrica, uma próstata aumentada e óculos bifocais?” (p. 19).
De certa forma, estes homens acabam por ser mais um dos ataques que Steinbeck faz à ideia americana de respeitabilidade, uma vez que são apresentados como indivíduos que não se guiam pelos valores tradicionais da sociedade porque, diz Steinbeck, “não mediam as suas alegrias pelos géneros vendidos, os seus egos pelos saldos bancários ou as afeições pelo preço por que lhes custavam” (p. 104). O contraste entre as suas intenções e as suas acções revela-nos que estes são homens bons, inúteis e malandros. Em nenhum momento Steinbeck se revela condescendente, pois as suas personagens não são homens bons apesar de serem filhos da mãe nem filhos da mãe apesar de serem homens bons. São sempre homens bons e filhos da mãe, como toda a gente, e é por isso que a Natureza, ao contrário da sociedade e dos ideais que muitas vezes empapam os romances neo-realistas, tem por eles a mesma ternura e a mesma impiedade que tem pelos homens respeitáveis.
Essa ausência de condescendência é, contudo, por vezes mitigada pela tradução, desde logo por referir-se às prostitutas e aos chulos (“girls” e “pimps”) de Cannery Row como “pequenas” e “alcoviteiras”. Note-se que esta escolha de vocabulário, que acaba por dar ao texto a condescendência que ele originalmente não tem, pode estar relacionada com o facto de esta tradução ter mais de cinco décadas e ter sido publicada pela primeira vez em Portugal ainda durante aquele tempo de bons costumes em que o papel dos tradutores seguia apertada cartilha. Contudo, se isto parece não ter sido tido em conta na opção editorial que considerou esta tradução apropriada para ser publicada em 2017, mais estranho é o facto de existirem expressões datadas que prejudicam a legibilidade do texto nos dias correntes, como, por exemplo, naquele episódio em que um rapaz, num momento de tensão, desafia outro dizendo-lhe: “Tu também me estás a sair um aldrabão. E agora queres jogar à tapona ou não queres?” (p 141), sendo o original “I think you’re a liar. You want to make something of that?”. Há, todavia, na tradução um passo intrigante e misterioso. Classifico-o desta forma não tanto pelo erro em si, que parece ser o resultado de um lapso, mas especialmente porque se perpetua inexplicavelmente de edição para edição nas últimas décadas de reimpressões. No capítulo 25, lê-se que certa ideia “não brotou de repente em flor. Sabiam dela, mas deixavam-na crescer gradualmente, como represália, no casulo das suas imaginações.” (p. 136). O lapso existente, a confusão entre palavras com uma sonoridade levemente parecida, ‘represália’ e ‘crisálida’ (no original ‘pupa’), tem certamente o seu lado cómico para o leitor, já a reimpressão desse lapso ao longo de décadas tem um certo lado trágico, pois se o exercício de especulação que nos leva a tentar perceber qual o equívoco que terá produzido o primeiro erro pode ser divertido, o mesmo exercício de especulação relativo ao segundo erro não pode deixar de ser angustiante.