Título: Nadar na Piscina dos Pequenos
Autor: Golgona Anghel
Editora: Assírio & Alvim
Preço: 12,20€

A poesia de Golgona Anghel tem sido descrita recorrentemente com os adjectivos ‘desconcertante’, ‘surpreendente’ e ‘inclassificável’. Com a recente publicação de Nadar na Piscina dos Pequenos é provável que os mesmos adjectivos sejam repetidos nos textos escritos sobre o novo livro de poemas da autora. No caso de existirem razões para que isso aconteça, parece-me que não são aquelas que têm sido invocadas por quem classificou desta forma os livros Crematório Sentimental (Quasi), Vim porque me Pagavam (Mariposa Azual) e Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (Assírio & Alvim). A justaposição de referências culturais eruditas e referências da cultura popular ou o sarcasmo presente na maioria dos poemas foram apresentadas como as características mais originais desta poesia, não tendo sido, porém, afirmado com clareza que nenhuma destas características é responsável per se pelo que existe de mais original na poesia de Golgona Anghel.

Na verdade, se alguma originalidade existe em versos como “Pensei em correr até à praia (não era o Nietzsche que corria?) / mas saltei à corda, uma corda de salto profissional / que comprei numa visita de estudo à Decathlon.” (p. 42), a mesma não se pode dever ao simples facto de a justaposição ocorrer, pois desse tipo de ‘originalidade’ está a arte das últimas décadas repleta, com a poesia portuguesa das gerações posteriores ao Surrealismo a ser cada vez mais generosa nesse aspecto. Esta mescla de referências deve ser elogiada ou reprovada pelo valor poético que tem, não no contexto da poesia portuguesa contemporânea, mas dentro no contexto de cada poema ou, na mais abrangente das hipóteses, no contexto da poesia da autora.

Já foi até lembrado a Golgona Anghel que esta abundância de referências podia atrapalhar a produção de um sentido do poema ou a possibilidade de o leitor aceder ao mesmo. Não deixa de ser verdade que, apesar de a quantidade de referências desse tipo ser bastante inferior à existente nos livros anteriores, essa abundância parece, por vezes, atrapalhar o acesso a um ‘sentido do poema’. Julgo, contudo, que a imposição dessa dificuldade resulta não de um desejo de escrever uma poesia ingenuamente obscura em que os poemas são desprovidos de significado, mas antes da intenção de produzir uma poesia que tenta fazer com que a transmissão de ‘sentidos’ não dependa exclusivamente da existência de temas ou assuntos facilmente identificáveis e partilháveis. Os leitores de Nadar na Piscina dos Pequenos percebem, sem grande demora, que anunciar o tema de poemas como Antes de ler a Bíblia ou Seduzido pelas novas oportunidades que o Verão nos concede é uma tarefa árdua e que versos como “Líamos Tolstoi num Skoda, / Hölderlin num Trabant descapotável, / Joyce num Aston Martin” (p. 14), em vez de criarem um sistema de referências onde o leitor não perderia o pé, em nada ajudam a esclarecer qual o assunto do poema. Não espanta, assim, que ‘inclassificável’ seja um dos adjectivos mais usados para descrever a poesia de Golgona Anghel por uma crítica acostumada a uma abordagem temática à poesia.

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A ironia impiedosa dos poemas de Golgona Anghel, quase sempre a roçar o sarcasmo, tem sido, como disse, descrita como uma das características mais originais desta poesia. Versos como “A batalha é nossa. / Já alugámos as trincheiras, / mas custa tanto tirar os pijamas” (p. 19 de Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho) terão sido os principais responsáveis por essa opinião certeira. Neste aspecto, a poesia de Golgona Anghel parece estar, de facto, menos acompanhada do que em relação ao uso da justaposição de referências eruditas e populares, ainda que não esteja propriamente isolada. Neste novo livro voltamos a encontrar essa ironia acutilante em poemas como Vou escrever uma história (p. 64-65), onde um auto-retrato hipotético muito pouco agradável não abdica da presença de um certo sarcasmo:

Antes da safra, estarei, talvez, ainda aqui,
seguramente triste,
provavelmente desdentada
e em cadeira de rodas
mas numa dessas motorizadas.

Em Nadar na Piscina dos Pequenos este tom irónico e sarcástico parece estar ainda mais presente do que nos livros anteriores e aparentando uma forma mais robusta, na medida em que parece constantemente visar um objectivo: a caracterização de um tempo, a que, à falta de melhor termo, chamarei ‘entretanto’ e que em muitos poemas se opõe a um ‘porvir’ do qual difere significativamente.

São muitos e variados os versos em que se alude a um tempo final e à sua inevitabilidade: “Com ou sem licença para fazer obras, / o horizonte montará o seu palco de fim de contas” (p.19), “De maneira que não adianta termos pressa: um dia, alguém chamará por nós / e nos marcará no peito / o número da sorte / com o ferro quente / com que se conta / na Primavera / o gado” (p.21), “No fim, vamos ser todos perdoados. / Podemos continuar a beber” (p. 52), “No fim, estaremos todos cheios de buracos / mas com a esperança / de assim respirarmos melhor, / como os bons queijos / e os melhores sapatos” (p. 62). Posto isto, não será descabido afirmar que numa boa parte dos poemas é apresentada uma intuição da finitude de todas as coisas, como se existisse uma constante intimação da morte. Neste sentido, esse porvir parece-se um pouco com um Godot que já devia ter chegado, como se diz em Chegou a época dos mosquitos na estepe (p. 63):

Há muito tempo que o apocalipse
devia ter chegado. Mas a mudança de hora
O tem atrapalhado.

Deve ser notado que nestes versos é uma construção artificial e humana do tempo (a mudança da hora) que impede que o tempo natural cumpra a sua função de forma exacta. De certo modo, é como se o Homem atrasasse o fim quando tenta livrar-se da consciência de que ele vem a caminho, mesmo apesar de saber que nunca o impedirá de chegar. Esta intuição atravessa toda a poesia de Golgona Anghel. Isto é perceptível não só pela existência numerosa de referências explícitas a esse porvir, mas porque esta poesia parece constituir-se como uma poesia do ‘entretanto’, uma poesia da ‘véspera’ que se revela excessivamente consciente dessa sua natureza.

O que pretendo sugerir é que este ‘entretanto’ é instaurado precisamente através da relação harmoniosa existente entre a abundante justaposição de referências eruditas e populares e o uso do sarcasmo. O produto desta relação é um discurso anticlimático que se caracteriza pela recusa permanente de qualquer tipo de pathos que leve ao sublime (que, a existir, pertence apenas ao domínio do porvir, que, por sua vez, é escassamente caracterizado). Deste modo, juntar Friedrich Schiller (o ‘sublime’ por antonomásia), o FMI e batatas fritas em apenas dois versos (p.64) revela que o ‘tempo do entretanto’ é um plano único onde existe contiguidade entre todas as coisas, independentemente da sua pertença à cultura erudita ou à cultura popular. A constante reiteração deste processo não permite, assim, a existência de um plano elevado que seria a expressão do sublime, nem de qualquer tipo de clímax, pois quando Golgona Anghel nos mostra “um álamo que se acende no horizonte / e brilha” compara-o, logo em seguida, à “porta de um frigorífico / aberta na noite” (p. 26), assim como faz questão de nos lembrar que “por estes lados da madrugada” (o tempo antes do porvir) o galo “tanto serve de despertador / como para a canja” (p. 17).

Para que o discurso anticlimático seja reforçado, todo este conjunto de justaposições entrelaça-se harmoniosamente com a tonalidade sarcástica que Golgona Anghel dá a grande parte dos seus poemas. O sarcasmo apresenta-se como uma espécie de antídoto a qualquer atitude patética (isto é, excessivamente emocional) que se possa assumir perante a intuição permanente da finitude das coisas, uma vez que esta atitude seria responsável pela produção de momentos de clímax, de uma catarse ou de laivos de transcendentalismo aos quais esta poesia pretende ser alheia. Utilizando um dos exemplos acima transcritos, vê-se que é sugerido que a atitude a ter perante a percepção de que um dia vamos ser todos marcados com o ferro quente com que se conta o gado é a de não nos apressarmos, conselho esse que parece ser muito próximo, na atitude subjacente, àquele que é dado no final do poema Sentes-te bem ao livre (p. 38):

Relaxa, meu amor,
a meta é simples:
cair no esquecimento.
Tu vais chegar lá antes.

Por mais que seja atingido por intimações do porvir, o ‘entretanto’ não é um tempo de tragédia. É antes, graças ao sarcasmo e à abundante justaposição de referências, o tempo em se cultiva uma certa leveza. É, tal como a poesia de Golgona Anghel, uma espécie de “comédia de vésperas / que o cansaço tem mal encenado” (p. 19). Estamos, então, perante uma tentativa fértil e original de instaurar um tempo em que por momentos fugimos à sensação de que tudo findará e, consequentemente, durante a qual nos julgamos capazes de atrapalhar o apocalipse, seja este pessoal ou universal.