O processo Galpgate vai ter mais arguidos. Além dos secretários de Estado dos Assuntos Fiscais (Rocha Andrade), Indústria (João Vasconcelos) e Internacionalização (Jorge Oliveira), cujo pedido de exoneração foi aceite este domingo pelo primeiro-ministro António Costa, há mais titulares de cargos políticos e públicos que deverão ser ouvidos em breve na Polícia Judiciária (PJ) no âmbito do Galpgate.
Os primeiros arguidos do processo, que está em investigação na 9.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, terão sido o chefe de gabinete de um dos secretários de Estado exonerados e um ex-chefe de gabinete que terá saído do cargo no primeiro trimestre deste ano. O primeiro é João Bezerra da Silva, chefe de gabinete de Rocha Andrade, enquanto que o segundo é Pedro de Almeida Matias, ex-chefe de gabinete de João Vasconcelos que foi nomeado como presidente do Instituto de Soldadura e Qualidade em março de 2017. Ambos acompanharam os seus secretários de Estado nas viagens ao Euro 2016 em França.
Contactado pelo Observado, Bezerra da Silva não quer comentar a sua constituição de arguido mas acrescenta: “apenas acompanhei o Dr. Rocha Andrade, não tendo aceite qualquer convite [da Galp]”. Uma argumentação relevante tendo em conta que a lei obriga a que o beneficiário da vantagem indevida aceite a mesma.
Questionado sobre se iria apresentar a sua demissão, João Bezerra da Silva, que é defendido pelo advogado João Medeiros (PLMJ), afirmou que “a exoneração de um Secretário de Estado implica, direta e imediatamente, a exoneração do seu chefe de gabinete, pelo que cessarei as minhas atuais funções”.
O Observador enviou igualmente um conjunto de perguntas escritas para Pedro de Almeida Matias mas ainda não recebeu qualquer resposta até ao momento.
Vítor Escária, assessor económico de António Costa, já foi igualmente constituído arguido, tendo apresentado a sua demissão do cargo que já tinha desempenhado no tempo de José Sócrates.
Como o Observador noticiou este domingo, a investigação está concentrada nos convites que a Galp endereçou. A lista de convidados para os jogos da Seleção Nacional no Euro 2016 era extensa e incluía deputados, autarcas e diversos titulares de cargos públicos. Todos eles entram na categoria equiparada a funcionário público, que é um dos requisitos fundamentais para a indiciação de alguém pelo crime de recebimento indevido de vantagem.
Por exemplo, pelo menos mais dois secretários de Estado do Executivo de António Costa foram convidados pela Galp mas ambos recusaram ir a França a expensas da petrolífera. Jorge Seguro Sanchez, secretário de Estado da Energia, foi um deles.
O que está em causa no inquérito é precisamente saber, tal como o Código Penal exige para o crime de recebimento indevido de vantagem, se a aceitação do convite da Galp corresponde a uma “conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes”. No entender do DIAP de Lisboa, a resposta é clara: não.
Porque o que está em causa não é apenas um bilhete de futebol, mas sim um pacote de despesas que se situa, no total, entre os 2 e os 3 mil euros por cada membro do Governo convidado. Só para o jogo da final Portugal-França, em Paris, a que assistiram Rocha Andrade e João Vasconcelos, pode estar em causa um valor de 1.400 euros por cabeça — e fora as despesas de cada um. Daí o MP considerar que a conduta dos arguidos não é “socialmente adequada e conforme aos usos e costumes”.
Qual a responsabilidade da Galp?
O crime de recebimento indevido de vantagem implica a perseguição penal de alguém que seja equiparado a funcionário público que tenha recebido uma vantagem e de alguém que tenha prometido ou dado algo indevido a um funcionário. Tal significa que, além do funcionário que recebeu a oferta, também um ou vários representantes da Galp deverão ser constituídos arguidos nestes autos.
Para já, e ao que o Observador apurou, nenhum responsável da petrolífera é arguido. Apenas foram ouvidos quatro diretores da petrolífera nos autos do Galpgate, mas sempre na qualidade de testemunhas. Guedes Oliveira, diretor de Relações Institucionais, e Manuel Andrade, diretor de Marketing Corporativo que tem a pasta dos patrocínios, foram dois dos responsáveis da Galp que já foram ouvidos na PJ — curiosamente, no mesmo dia, no início de junho, em que Rui Cartaxo, chairman do Novo Banco, foi constituído arguido noutro processo mediático, o caso EDP.
O jornal Público noticia esta segunda-feira que a Galp já foi constituída arguida, mas fonte oficial da petrolífera afirmou ao Observador que tal não é verdade: “A empresa não é arguida e não foi notificada nesse sentido”.
Irrelevante a devolução do dinheiro
Depois de o caso ter sido revelado pela revista Sábado em agosto de 2016, um pouco mais de um mês após a vitória de Portugal no Euro 2016, o Governo anunciou que os três secretários de Estado iriam devolver os montantes das despesas à Galp. O valor da devolução nunca foi anunciado mas, seja como for, tal devolução é indiferente.
Isto porque é irrelevante o montante (total ou parcial) que os secretários de Estado devolveram. O ponto relevante no que ao processo criminal diz respeito é o facto de o crime de recebimento indevido de vantagem se consumar com a solicitação e a aceitação.
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Igualmente irrelevante do ponto de vista jurídico é o facto de os três secretários de Estado terem requerido (ou irem requerer) a constituição como arguidos. Contudo, tal pedido não tem grande efeito no processo. O poder de decisão está exclusivamente nas mãos do procurador titular do processo que chamará Rocha Andrade, João Vasconcelos e Jorge Oliveira para um interrogatório quando entender que tal faz sentido. O comunicado dos três secretários de Estado deve ser visto como uma estratégia de damage control política e mediática.
Que crime é este — e como funciona?
O crime de recebimento indevido de vantagem tem uma pena de prisão até aos 5 anos de prisão ou uma pena de multa até 600 dias. Trata-se de um ilícito que surgiu entre 2009 e 2010 na Comissão Eventual para o Acompanhamento Político do Fenómeno de Corrupção e para a Análise Integrada de Soluções com Vista ao seu Combate. Com José Sócrates a liderar o Governo, a Assembleia da República aprovou a integração deste crime no Código Penal em 2010.
Trata-se de um ilícito que nasce para combater a corrupção que incide sobre os funcionários públicos, tendo uma prova muito mais fácil quando comparada com o crime de corrupção. Mas com muito menos requisitos de prova. Por exemplo: não é necessário estabelecer um nexo causal entre o alegado recebimento e um determinado ato de favorecimento ilícito.
O crime, que acabou por ser integrado em 2010 no Código Penal (art.º 372) e no Regime dos Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos, consuma-se quando se verificam duas situações:
- O funcionário tem de solicitar ou aceitar uma determinada oferta que não lhe seja devida;
- O empresário tem de dar ou prometer tal oferta indevida.
Na prática, basta o funcionário declarar o seu consentimento em receber uma determinada oferta indevida para que o crime seja consumado.