Agosto está quase a ir embora, tiramos pela última vez o sal do corpo enquanto dizemos adeus às férias, o sol põe-se a fazer birras, a roupa volta ao corpo: que lindos dias para germinar uma depressão, não é? Certamente que sim, pelo menos no entender das gentes que dirijem as editoras de música – senão reparem: dia oito de Setembro chega Sleep Well Beast, dos The National, malta sempre disposta a musicar o sentimento de confusão existencial; há dez dias os Grizzly Bear regressaram com Painted Ruins; e na passada sexta-feira foi a vez dos The War On Drugs voltarem, quatro anos após o improvável êxito de Lost In the Dream, que não foi mas podia ter sido a primeira obra-prima dos Dire Straits.
Pode haver melhor plano para o fim-de-semana que tentarmos criar raízes num sofá – o telefone desligado, o mail abandonado – enquanto ouvimos A Deeper Understanding imersos num extremamente agradável sentimento de auto-comiseração? Pode. E com muita facilidade, até – embora creia que um jornal não seja o local indicado para discorrer sobre todas as hipóteses que me passam agora pela cabeça.
O que não invalida que A Deeper Understanding — que no fundo, e como já acontecia com Lost In the Dream, é um conjunto de variações da mesma canção — seja um disco do caraças, tão eficaz nos seus propósitos que um tipo tem logo vontade de ter problemas, de preferência amorosos e/ou existenciais, de modo a fazer pendant com a música.
Não estamos aqui para pregar aos não-convertidos, aos descrentes, aos aventureiros que desejam uma revolução musical a cada disco: não há pingo de exagero quando dizemos que todas as canções são uma variação da mesma. Em favor dos The War On Drugs, diga-se que nisto eles não estão sós: tal como com os Beach House ou os The National (embora menos neste caso, e só em cada disco, não de disco para disco) um álbum dos The War On Drugs não está muito longe daqueles velhos que andam pelos comboios da CP a balbuciar ad infinitum a mesma frase – só que os The War On Drugs são mais melódicos.
[o vídeo de “Pain”]
E também não vale a pena esperarem grande variedade emocional aqui. Porque haveriam de? Por acaso alguma vez se deu o caso de Townes van Zandt não estar deprimido? (Por vezes estava extremamente deprimido.) De Matt Berninger não estar confuso com a sua relação? (Por vezes está extremamente confuso.) Adam Granduciel, o líder e, no fundo, único membro dos The War On Drugs, está sempre ensimesmado, a falar para um tu ausente, com quem Granduciel certamente seria verdadeiramente espectacular se ao menos ela estivesse ao pé dele (nunca está).
Caso ainda não tenha sido suficientemente assertivo em relação a este ponto, permitam-me listar alguns nomes de músicas deste disco que ilustram o ponto: temos uma “Pain”, uma Holding On”, uma “Knocked Down”, sobre como a vida pode derrubar-nos, “In Chains”, que escuso de explicar sobre o que é, ou – e esta acho que também não precisa de explicação – uma “You Don’t Have To Go”. Almas sensíveis poderão ponderar uma ida ao psicólogo só de ler o alinhamento.
Isto é o tema; musicalmente há sempre uma linha de guitarra que impulsiona a canção, toalhas de sintetizadores que foram novidade algures na década de 80 e um crescendo constante até que a atmosfera até então melancólica é possuída por solos de guitarra.
De modo que, pelo menos teoricamente, sentir amor pelos The War On Drugs não é assim tão fácil – o ouvido tratado, o ouvido do melómano, é um ouvido elitista, consciente de que ouvir música não é apenas sentimento, é também um exercício de qualificação social: o melómano ouve música boa, não parola, resiste à sentimentalidade. Em suma, o ouvido tem resistência a certos pormenores nos The War On Drugs – àquilo a que tecnicamente chamamos “azeite”.
Mesmo para quem deposita mais esperança num disco dos The War On Drugs do que num par de imperiais com o melhor amigo, mesmo para quem a humanidade é mais fácil, mais compreensível, nos livros e filmes e discos que nas pessoas, é difícil não reconhecer que há doses excessivas de reverb nesta música, solos que o bom gosto poderá qualificar como demasiado longos e que recorrem em demasia à estridência dos agudos, e sobredoses de teclados etéreos, que não seriam descabidos num disco de Enya.
[“Holding On”]
Com honestidade brutal: em certo sentido o universo dos The War On Drugs é uma valente parolada, a começar pelo cabelo de Adam Granduciel, o líder, e a acabar nas rimas – em que não é inesperado ouvir “rain” rimar com “pain”. Nada de errado nisso: os Violent Femmes cantavam “I hear the rain/ I feel the pain” e isto não reduzia o gigantismo da cantiga. Dependendo do lado da barricada em que se viveu o início dos anos 80, o universo de Adam Granduciel pode mesmo ser uma tortura: ele é demasiado influenciado pelas sonoridades da primeira metade dessa década para ser água para todo o bico. Porque essa foi a época de demasiados teclados, demasiados agudos nos solos, demasiado cabelo nos guitarristas, demasiado azeite em geral.
Não é difícil demonstrar que os War On Drugs também sofrem de excesso de excesso, basta olhar para a duração de cada cantiga – é raro encontrar uma que não chegue aos seis minutos. Também é raro encontrar um refrão – os refrões são a mesma sequência de notas que move toda a canção, apenas que numa cadência menos lenta. É isso, uma canção dos The War On Drugs: uma linha de guitarra, uma sequência de acordes repetida até à exaustão, enquanto tudo à volta vai crescendo e crescendo.
Sendo que este, note-se, e só para acabar com esta minha faceta de advogado do diabo, não é um azeite épico qualquer – é um azeite épico melancólico, exacerbadamente romântico, por vezes declaradamente lamechas. Um álbum dos The War On Drugs é uma sucessão de canções de amor, de solidão, de interrogações do género “Porque é que eu estou sozinho?”, de pedidos ao outro (à outra) que vão do “Volta para mim” ao “Dá-me a mão”, passando pela inquisição existencial: “Porque é que eu sou assim?”. Se quiserem um exemplo concreto: na épica (adjectivo que conto usar muitas vezes) “In chains”, Granduciel canta “I’m in love, i’m in pain” e, mais à frente, filosofa nos seguintes termos: “I believe in all the power/ in doing what we can do/ we can try to make it through”.
Isto é literatura de pacote de açúcar em chavéna de café. Mas comove-me. Pior: eu acardito nisto. (Adeus, reputação.)
Mais ou menos por esta altura, o ser humano ocidental que tem mais que fazer, porque trabalha e tem contas para pagar, ou tem de ajudar o chato do filho em complicadíssimos exercícios com labirintos, ou tem um namorado chato e particularmente exigente que não lhe permite ler o jornal em sossego, pergunta-se a si mesmo: “Mas então porque é que eu estou a ler a porra deste artigo, se o bacano que escreve só diz mal, parece a minha avó a comentar a minha vida?”
Ah, perdoem o mau feitio. Na realidade isto era para ser uma prosa épica, melancólica e romântica, quem sabe se vagamente lamechas, a laudar a capacidade que as canções dos The War On Drugs têm de exponenciar todas aquelas coisas que nos assustam na vida (o amor, o amor falhado, a solidão, a sensação de perda, a sensação de falha, a sensação de sermos uma merda porque falhamos), mas que numa canção sabem muito bem.
Porém, um excesso de racionalidade neste cérebro cujas diatribes agora vos aborrecem conduz sempre ao mesmo destino: sobre-analizar. De modo que chegámos a este ponto em que uma peça inicialmente pensada para vos alertar para a existência deste objecto se entretém a anotar-lhe cada minúsculo defeito, esquecendo, por instantes, o que realmente importa – a grandeza desta música, a sua imensa beleza.
Perdoem, por vezes um homem de tanto atentar nos detalhes perde a perspectiva do que é importante.
[“Strangest Thing”]
E o importante nas canções dos The War On Drugs é a combinação entre as doses extremas de beleza melódica e de melancolia presentes em cada canção, bem como o despudorado acesso que temos aos pensamentos mais ingénuos que um ser humano é capaz de colocar a si mesmo. Granduciel não é um poeta – mas as suas questões são as de toda a gente e quando embrulhadas num laçarote sónico repleto de sacarina, bom, nessa altura as suas frases em que “pain” rima com “rain” tornam-se quase filosofia.
A segundo melhor canção de A Deeper Undestanding é a (lá está) épica e enormíssima “In Chains” mas a primeira grande canção é “Pain”, uma melodia tímida e frágil entrelaçada em linhas de guitarra em que Granduciel canta “I wanna find what can’t be found” antes de entrar um valente solo de guitarra. Esta é uma das qualidades extremas dos The War On Drugs: a capacidade de passar do negrume para o êxtase. “Holding On” tem aquele boogie dos sintetizadores dos anos 80 (isto, note-se, é um elogio) antes de a slide guitar trazer vertigem; enquanto “Knocked Down” é talvez a canção mais despida do disco, com um discreto vibrafone a iluminar a escuridão. Granduciel canta: “Wanna love you/ but I get knocked down”. Assim à partida não se prevê Nobel, mas não deixa de ser uma canção lindíssima; no extremo oposto “Nothing to Find” arranca a toda a velocidade, como se Granduciel quisesse provar que não escreveu apenas uma canção, escreveu duas (uma lenta e uma rápida).
Mas se tivesse de vos indicar uma só canção que servisse de bandeira a A Deeper Understanding, se tivesse de escolher a “Red Eyes” deste disco, seria “Thinking of a Place”, em que as obsessões sónicas de Granduciel, o seu talento melódico, a sua voz de ventríloquo de Dylan, o seu amor pelas teclas, pelas texturas complexas, pela slide guitar, o seu talento de guitarrista confluem numa enormíssima e charmosíssima canção.
“I’m moving through the dark/ of a long black night”, canta Granduciel em “Thinking of a Place”. Se por acaso derem por vós meio tristonhos enquanto escutam A Deeper Understanding, não fiquem tristes por estarem tristes. É só um disco. Um tremendo disco. Talvez mesmo um tremendo épico disco. Mas só um disco. (Vou comprar Prozac.)