Terça-feira, 17 de janeiro, foi um dos dias que marcaram a história da Alternative für Deutschland (AfD, sigla no original de “Alternativa para a Alemanha”). Num salão em Dresden, dois líderes do partido eurocético e anti-imigração fizeram algumas das declarações mais radicais da política do pós-guerra, ousando pôr em causa a contrição sobre o passado nazi do país. “Temos a mentalidade de um povo totalmente derrotado”, declarou Björn Höcke, líder do partido na Turíngia, estado federal do leste do país. “Somos o único povo do mundo que colocou um monumento de vergonha no meio da nossa capital”, disse, referindo-se ao memorial do Holocausto em Berlim. Antes disso, já Jens Maier, da Saxónia, tinha proferido outra frase polémica: “Declaro aqui que este culto da culpa tem de acabar”, numa referência à expressão utilizada pelo partido abertamente neo-nazi NPD.

A líder do partido na altura, Frauke Petry, não teve dúvidas no castigo que queria ver aplicado: expulsão do partido para Höcke e Maier. As declarações dos dois homens pareceram radicais de mais à líder da AfD — ela própria adepta de frases por vezes polémicas, como a proposta de a polícia poder disparar sobre refugiados. Já em novembro de 2016, quando o Observador esteve presente num encontro do partido, o discurso agressivo contra os estrangeiros era audível — “Temos de metê-los todos num comboio e mandá-los para a terra deles”, ouviu-se por lá. No entanto, o radicalismo dentro daquele partido viria a acentuar-se ainda mais desde então.

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Fundado em 2013, o partido liderado inicialmente por Bernd Lucke e um grupo de economistas tinha como principal objetivo opor-se aos resgates económicos a países como a Grécia e Portugal. Numa entrevista dada pelo próprio ao Observador, em 2014, Lucke definia o seu partido essencialmente como eurocético, socialmente conservador e liberal em termos económicos. Esses princípios fundadores, no entanto, desvanecer-se-iam com o tempo e com a descida nas sondagens. Os anos seguintes ditariam um endurecimento da retórica contra migrantes e refugiados, numa guinada ideológica que desagradou a Lucke. Este bateu com a porta em 2015, acusando o partido de se ter tornado xenófobo e islamofóbico. “Cometi muitos erros e um dos maiores foi ter percebido demasiado tarde que alguns membros estavam a empurrar a AfD para se tornar um partido de protesto populista”, declarou à altura.

Bernd Lucke, eurocético alemão, diz que “a Europa está a ir no caminho errado”

A convenção do partido em abril de 2017 — a mesma em que o partido decidiu segurar Höcke e Maier –, pôs a nu as divergências internas. Numa altura em que o partido enfrentava uma descida nas sondagens (dos 15% que chegou a ter em 2016 para os 7% em alguns estudos de opinião), os membros da AfD votaram em Colónia a favor de um manifesto anti-islâmico que quer proibir a construção de mesquitas, o uso da burqa e a chamada para a oração. Para além disso, defende novas medidas relativamente aos requerentes de asilo e refugiados, na sequência da política de portas abertas instaurada pela chanceler Angela Merkel em 2015, que ajudaria a aumentar a popularidade da AfD: fim do direito a uma entrevista individual, deportação imediata dos que viram os seus pedidos rejeitados e tratamento judicial de alguns menores como se fossem adultos.

Colónia marcou também a rejeição da moção proposta por Petry, que pedia para “não haver espaço para o racismo, o anti-semitismo e as ideologias nacionalistas” no partido. A líder acabaria por anunciar que não seria a candidata principal do partido às eleições legislativas de setembro, expondo assim as divisões internas. A fação mais radical parecia ter vencido a “moderada” Petry.

A liderança bicéfala que é “um estudo sobre opostos”

O partido escolheu então não um, mas dois candidatos para ocupar o lugar de Petry na liderança das listas: Alexander Gauland e Alice Weidel. Esta liderança bicéfala é aquilo que a Deutsche Welle (DW) chamou “um estudo sobre opostos”.

A AfD é frequentemente acusada de seguir uma estratégia em que um dos membros ‘da extrema-direita’ quebra um tabu social com uma declaração ridícula e ofensiva, sendo depois corrigido por um membro ‘moderado’“, explica a radiodifusora alemã.

Alexander Gauland, de 76 anos, é um antigo advogado e jornalista que fez parte da CDU de Angela Merkel durante décadas, mas que se radicalizou ao longo dos anos e que lidera agora o partido. Hoje em dia, Gauland defende que os alemães deviam estar orgulhosos dos seus soldados nas duas guerras mundiais, num eco das declarações de Höcke, e, recentemente, declarou que um membro do governo de origem turca, Aydan Özoguz, devia ser “largado” na Anatólia.

A líder que representa a outra fação é Alice Weidel, uma economista de 38 anos, lésbica, que vive com a sua companheira nascida no Sri Lanka. A antiga trabalhadora da Goldman Sachs, que viveu na China durante seis anos, já se assumiu como sendo o rosto duma AfD mais moderada — “A minha função é trazer a AfD de volta para a perceção pública como o partido contra as políticas da crise do euro”, disse Weidel ao jornal Handelsblatt em maio –, mas tal não a tem impedido de radicalizar o discurso nos últimos meses antes das eleições. “Os países árabes têm tido toda a liberdade para enviar os seus imãs para a Alemanha com o seu populismo e a sua sharia da idade da pedra“, declarou.

Contudo, Weidel defende medidas como a criação de um sistema de imigração por pontos semelhante ao canadiano, para atrair imigrantes mais qualificados — uma medida que choca com o defendido pela maior parte dos membros e apoiantes da AfD. Divergências que não tiram o sono ao outro líder, Gauland: “Gosto da senhora Weidel, ela é simpática e isso é importante quando se quer trabalhar em conjunto numa liderança destas”, disse ao jornal Die Zeit ainda este mês, à mesa de um restaurante italiano em Potsdam.

“Resgatar o país de volta”. Com um partido dividido?

A unir os membros do partido estão não só a oposição a refugiados e migrantes, como o clima de desconfiança de algumas elites, num movimento semelhante aos que apoiaram Donald Trump, nos EUA, e Marine Le Pen, em França. A DW exemplifica a hostilidade do partido para com os media — que apelidam muitas vezes de “Lügenpresse” (“imprensa mentirosa” em alemão), um termo popular durante o domínio nazi –, através de ações como a proibição de entrada em eventos do partido.

Apesar de terem felicitado as vitórias de outros líderes como Trump ou Le Pen, tal não tem impedido a AfD de se distanciar deles por vezes. Ainda em agosto, a líder Weidel pediu ao Presidente americano para “tweetar menos e governar mais”. E Georg Pazderski, representante do partido em Berlim, disse em tempos que a Frente Nacional francesa era “um partido socialista”, sublinhando por oposição as propostas pró-mercado da AfD. A ideologia da AfD é por vezes difícil de definir: a título de exemplo, a AfD tem uma série de propostas economicamente liberais como a introdução de um teto máximo para os impostos, mas também quer que todas as privatizações sejam referendadas.

A crítica a Trump, contudo, não evitou que o partido seguisse algumas das suas estratégias. “A AfD faz trabalho nas redes sociais de uma forma muito mais proeminente do que qualquer outro partido alemão”, explicou Karolin Schwarz, que trabalha para um site que faz monitorização online, ao Washington Post. No mesmo artigo, outro especialista digital, Maksymilian Czuperski, acusa o partido de usar a manipulação e, por vezes, informação falsa online como estratégias para ganhar votos.

Frauke Petry, ex-líder da AfD (JULIAN STRATENSCHULTE/AFP/Getty Images)

Também o discurso de Gauland na noite de domingo, após ser conhecido que a AfD entrou no Bundestag com estrondo, como terceiro partido mais votado (mais de 13% dos votos), teve um tom semelhante ao destes líderes. “Vamos persegui-los, Angela Merkel e sei lá quem mais, e vamos resgatar o nosso país de volta”, declarou o líder do partido aos apoiantes.

As fraturas internas tornar-se-iam ainda mais evidentes na ressaca da manhã seguinte. “Depois de uma cuidadosa reflexão, decidi que não vou sentar-me com o grupo parlamentar [da AfD]”, anunciou Frauke Petry na manhã desta segunda-feira, em conferência de imprensa.

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Um partido anárquico pode ser bem sucedido na oposição, mas não pode dar aos eleitores uma oferta credível para ser governo”, disse Petry.

Os 94 deputados eleitos pela AfD nesta eleição passam assim a 93 — e este número pode diminuir, caso alguns apoiantes de Petry lhe sigam os passos. A previsão do membro do partido Jörg Nobis, que dizia na noite das eleições à revista Der Spiegel que Gauland e Weidel “terão agora uma maior responsabilidade de manter o partido unido”, parece estar certa. Com apenas quatro anos de vida, a AfD passou de movimento eurocético a partido radical anti-imigração e anti-Islão e prepara-se agora para enfrentar a responsabilidade de ser oposição. Que esta eleição foi histórica, poucos têm dúvidas, já que a entrada no Parlamento alemão de um partido que muitos classificam de extrema-direita nunca tinha acontecido desde o fim da Segunda Guerra. A questão a que ninguém parece saber responder para já é o que restará dele quando esse mandato chegar ao fim.