Foram umas horas, apenas umas horas, mas quem passasse naquele dia de agosto pela Wikipédia veria qualquer coisa anormal na página dedicada a Josep Maria Bartomeu. “Foram 47.270 atrasados mentais (sócios) que o sufragaram nesse dia como presidente do FC Barcelona, em 109.367 possíveis”, surgia entre muitas outras críticas ao líder dos blaugrana. A saída de Neymar, e todos os capítulos que a história envolveu, deixou marcas nos adeptos do clube. Mas foi este domingo, pela primeira vez, que o empresário de 54 anos enfrentou um verdadeiro teste de fogo.

“Lamentamos muitíssimo o que se está a passar e que nos entristece. É um jogo excecional e queremos dar o apoio àqueles que estão a sofrer. O Barça sempre defendeu a liberdade de expressão, a democracia e o direito de decidir”, comentou Bartomeu em declarações à televisão do clube. Algo expectável, tratando-se de alguém que sempre se mostrou defensor do referendo de 1 de outubro. “Tentámos suspender o jogo. A situação não era a ideal para jogarmos, mas por razões excecionais isso não foi possível. No clube, reunimos todas as parte e os jogadores, e decidimos jogar à porta fechada. O Camp Nou vazio é uma mensagem para o mundo inteiro ver. Não foi uma questão de segurança, os Mossos informaram-nos que não havia problema, estava tudo normal”, completou.

No entanto, e mais uma vez, os factos viriam a contradizer essa ideia de que o que estava em causa era uma tomada de posição perante o que se estava a passar na Catalunha: o As teve acesso ao relatório do árbitro do Barcelona-Las Palmas, Jose Luis Munuera Montero, onde o motivo que surge para o jogo à porta fechada é o da segurança. “Antes desta reunião [com vários membros da Liga, dos clubes e das forças de segurança], o sr. presidente do FC Barcelona, no corredor de saída para o balneário dos árbitros, antecipou-nos que, por motivos de segurança, tinham decidido jogar à porta fechada. Já nos balneários, os agentes do corpo de segurança e o chefe de segurança do FC Barcelona explicaram-nos a decisão adotada: que o jogo iria ser feito sem a presença de espetadores”. Também os adeptos ficaram (ainda mais) à beira de um ataque de nervos, com milhares de pessoas à porta a pedirem que o clube ou tivesse falta de comparência (perdendo seis pontos) ou abrisse as portas de Camp Nou.

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A Marca acrescenta ainda vários detalhes sobre a reunião de Bartomeu e os jogadores. Piqué, Sergi Roberto e mais um ou outro jogador não queriam jogar, mas a maioria acabou por decidir entrar em campo (Messi não terá opinado). Valverde, o treinador, que se juntou à reunião mais tarde, teve uma postura prudente mas sempre vincando que se devia fazer o melhor para o clube enquanto instituição. E o que disse o líder blaugrana? Que o encontro e respetivo resultado eram demasiado importantes para o clube. “Jogamos muito no plano desportivo. Se perdermos a Liga por estes seis pontos, ninguém se recordará da suspensão deste partido e ficará apenas que não fomos campeões”, terá referido. Iniesta, o capitão, ouviu, anuiu mas quis deixar um aspeto claro: “Que não fique a ideia de que fomos nós, jogadores, que tomámos a decisão, foi uma decisão do clube”.

Pouco depois da tomada de posição, dois vice-presidentes apresentaram a demissão. Como refere o El Mundo, Carles Vilarrubí, o maior defensor do boicote ao encontro que tinha a pasta institucional do clube, foi o primeiro a bater com a porta. Seguiu-se Jordi Monés, vogal ligado ao Barça Innovation Hub mas que tinha estado, por exemplo, na apresentação de Paulinho. Outros responsáveis entraram numa espécie de período de reflexão antes de tomar alguma medida. A publicação revela ainda uma outra curiosidade: a Rádio Catalunha e a Rac1 optaram por não cobrir o encontro, em solidariedade com o que se passava nas ruas.

Como seria de esperar, Juan Laporta, antigo presidente do Barcelona (e que teve nos seus órgãos sociais Bartomeu), criticou de forma dura a atitude do atual líder do clube: “Jogar à porta fechada é inibir-se. É votar em branco. É ser cúmplice dos que praticam a violência indiscriminada, é ser cúmplice daqueles que impedem o exercício pacífico dos direitos e liberdades democráticas”. “É uma direção dividida entre os ‘cagaos’ e os ‘muy cagaos'”, escreve o La Vanguardia.

Para colocar ainda mais achas na fogueira, o Partido Popular da Comunidade de Madrid fez um tweet polémico que incendiou ainda mais os blaugrana. “Dois modelos de país”, escreveu com uma imagem onde estava o Santiago Bernabéu cheio de adeptos do Real Madrid com bandeiras de Espanha e o Camp Nou completamente vazio. E ainda houve o discurso em lágrimas de Piqué a tudo o que se passou este domingo (dizendo mesmo que poderia sair da seleção caso fosse motivo de incómodo) e as inúmeras reações de Pep Guardiola, Xavi, Puyol ou os irmãos Gasol do basquetebol, Pau e Marc.

No rescaldo de tudo isto, Bartomeu, que enfrenta o período mais crítico desde que assumiu a presidência do Barcelona, convocou esta segunda-feira uma reunião de emergência com toda a direção, devendo depois fazer uma declaração sobre as medidas que serão tomadas. Isto apenas uns dias depois de um sócio do clube, Agustí Benedito, ter falhado por pouco os apoios necessários para fazer uma moção de censura e convocar uma Assembleia Geral. Antes, todos os funcionários do clube aderiram ao apelo do movimento “Taula per a la Democràcia” e pararam de trabalhar durante 15 minutos “para condenar o recurso à violência para impedir o exercício de um direito democrático e a livre expressão dos cidadãos”.

São períodos complicados para o empresário nascido em Barcelona mas que cresceu em Vilanova del Vallés. Licenciado em Administração de Empresas e com um MBA tirado na Escola Superior de Administração e Direção de Empresas (ESADE), Barto, como também é tratado, é conselheiro do ADELTE Group, empresa de construção de veículos industriais criada pelo avô em 1962, e da Equipo Facility Services (EFS), ligada à manutenção de terminais e de equipas eletromecânicas. A ligação ao Barcelona, essa, já é antiga. E em múltiplas funções.

O presidente do clube catalão jogou basquetebol nas equipas de formação dos blaugrana (era base e extremo), antes de passar para o “rival” Espanyol e alinhar depois nos mais modestos CB Mollet e CB Santa Coloma. Casado com Marta Frías e pai de dois filhos, chegou ao Barcelona como dirigente em 2003 como vogal de um elenco liderado pelo agora opositor Juan Laporta, ficando com a pasta das modalidades (basquetebol, andebol e hóquei em patins) antes de se demitir dois anos depois, tal como o amigo Sandro Rosell. Regressaria mais tarde quando este último assumiu a presidência do Barça, em 2010, e ficaria como líder interino alguns meses entre 2014 e 2015, quando Rosell caiu após a polémica em torno da transferência de Neymar (que ainda “apanhou” também Bartomeu).

Em 2015, apresentou-se a sufrágio frente a Juan Laporta e ganhou com 55% dos votos. O sucesso europeu do rival Real Madrid acabou sempre por afetar de forma indireta o mandato, mas foi nos últimos meses que somou “tiros nos pés” que fragilizaram gradualmente a sua posição: o erro comunicacional de um dirigente blaugrana (Jordi Mestre, curiosamente um dos que agora se demitiu) na apresentação de Paulinho que mostrou que tinha mentido quando disse que Messi já renovara contrato; a polémica revelada pela TV3 da Catalunha sobre um alegado esquema de venda ilegal de alguns bilhetes no Camp Nou; a novela da saída de Neymar e respetiva procura de um sucessor.

Quando assumiu a presidência do Barcelona, Bartomeu referiu que queria, a todo o custo, manter a vida que levava. Sobretudo aquela parte dos dez quilómetros de corrida, que lhe faziam bem para pensar. Entre estes tempos mais agitados, deixou de fazer jogging. E agora corre para debelar a maior crise do seu mandato.