Muito dificilmente dará para voltar atrás nos passos que foram dados este domingo na Catalunha e em Espanha. Depois de um dia em que as autoridades fizeram pelo menos 844 feridos entre cidadãos que procuraram votar num referendo que desde o seu início foi tido como inconstitucional, o Governo central espanhol e o governo regional da Catalunha prometeram, à vez, cavar ainda mais fundo as trincheiras de um confronto sem fim à vista.

Carles Puigdemont já não fala com Espanha: independência unilateral ou eleições para reforço de poder?

Quando o presidente regional da Catalunha falou aos catalães, ainda não eram conhecidos nem os resultados, ou sequer projeções, do referendo deste 1 de outubro. Ainda assim, quando falou a partir do Palácio da Generalitat, Carles Puigdemont disse: “Neste dia de esperança e também de sofrimento, os cidadãos catalães ganharam o direito de ter um Estado independente que é constituído em forma de república”. Não foi uma declaração de vitória, mas antes uma declaração de interesses. Mais à frente, garantiu que “nos próximos dias” irá “transferir” os resultados do referendo para o parlamento regional da Catalunha, “para que atue de acordo com o que está previsto na lei do referendo”.

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Segundo a lei do referendo, aprovada no parlamento regional da Catalunha e anulada pelo Tribunal Constitucional espanhol, basta haver apenas mais um voto no “Sim” do que aqueles que há no “Não” para este ser válido. Foi precisamente isso que aconteceu. Já com a noite avançada, o governo regional da Catalunha anunciou que o “Sim” tinha vencido com 90,09% dos votos e que o “Não” teve 7,87%. Foram estas as contas finais, após a votação de 2.262.424 de eleitores — isto é, de uma participação de 42%. A lei do referendo aprovada pelo parlamento regional não prevê um mínimo de participação para que o resultado seja vinculativo. Como tal, a vitória do “Sim” está consumada para o governo regional catalão. O passo seguinte, indica a lei que foi declarada inconstitucional, é a “declaração formal da independência da Catalunha”. Unilateral. Será que Carles Puigdemont dirá nos próximos dias “Adéu, Espanya”? É possível. Mas também não está fora de questão que, procurando sustentar-se num possível empurrão anti-Madrid que as imagens de agressões policiais possam ter criado, convoque eleições autonómicas antecipadas, de forma a reforçar o seu poder.

A partir de agora, a Catalunha já não fala com Espanha, fala com a Europa. Basta fazer contas: no seu discurso, Puigdemont fez duas referências a Espanha e dez à Europa ou à União Europeia. “O Estado espanhol escreveu hoje uma página vergonhosa na sua relação com a Catalunha. Infelizmente, não é a primeira”, disse, em alusão aos pelo menos 844 feridos na sequência de intervenções policiais em assembleias de voto. Mas, depois dessa breve referência a Espanha, dirigiu-se ao que acredita ser o futuro da Catalunha: a Europa e a União Europeia. “A hostilidade com que foram recebidas as exigências democráticas dos cidadãos do nosso país já não é um assunto interno, é um assunto de interesse europeu”, disse. “Os catalães ganharam o direito a ser respeitados pela Europa. A União Europeia já não pode olhar para o outro lado.” Não é, porém, claro que a União Europeia queira olhar para a Catalunha. Ao longo deste domingo, apenas dois líderes de país da comunidade europeia condenaram a violência na Catalunha: o primeiro-ministro da Bélgica, Charles Michel; e o primeiro-ministro da Eslovénia, Miro Cerar.

Mariano Rajoy não viu nenhum referendo a acontecer: mas pediu diálogo aos partidos (só o C’s o ouviu)

Quando Mariano Rajoy falou aos espanhóis, os resultados também ainda não eram conhecidos. Porém, os resultados nunca lhe interessariam: o Presidente de Governo nunca reconheceu a legitimidade do referendo deste domingo. E, depois de ele ter acontecido, Rajoy garantiu que ele não existiu. “O referendo que pretendia liquidar a Constituição espanhola e independentizar uma parte do nosso país sem contar com a opinião do conjunto dos espanhóis simplesmente não existiu”, disse, numa declaração a partir do Palácio de Moncloa. E, também sem conhecer os resultados do referendo, nem os números da participação, o presidente do governo espanhol assegurou que “a grande maioria do povo da Catalunha não quis participar no guião dos secessionistas”. Para Rajoy, “a grande maioria dos catalães demonstrou que são gente de lei”.

O Presidente de Governo anunciou que vai falar ao Congresso dos Deputados esta segunda-feira e que vai convocar todos os partidos com representação parlamentar para “refletir” sobre o que se passou na Catalunha. Mariano Rajoy acrescentou que não vai “fechar nenhuma porta”, mas colocou como condição que houvesse um diálogo honesto e sincero, sempre dentro da lei e com a marca da democracia”. Não é claro que este convite para reflexão seja bem acolhido pela maioria dos partidos com representação no parlamento nacional. Apenas o Ciudadanos parece estar disponível para fazê-lo. O Podemos pediu-lhe (novamente) que se demitisse. Depois, há o fiel da balança, o PSOE, de Pedro Sánchez. Quando falou ao país, remeteu todas as responsabilidades para o Governo de Espanha e para o governo regional da Catalunha. Depois, saltou fora da discussão e deixou-lhes um recado: “Negoceiem, negoceiem, negoceiem”. Mas Mariano Rajoy não demonstra qualquer vontade de falar com aqueles que chama de “secessionistas”.

A polícia que bate em quem vota e a polícia que bate na polícia: a outra batalha catalã

Para um país que há pouco mais de 80 anos foi palco de uma sangrenta guerra civil, ver discussões e até pequenos confrontos entre forças policiais distintas não é uma mera curiosidade, mas antes um arrepio na espinha. À dicotomia “Espanha contra Catalunha” que a aceleração do processo independentista exacerbou, juntou-se outra: “Polícia Nacional e Guardia Civil contra Mossos d’Esquadra”. Da parte da polícia catalã, havia ordens superiores para que fosse evitado ao máximo o uso da violência. O resultado, porém, não foi apenas a passividade dos Mossos d’Esquadra. Em pelo menos uma ocasião, foi possível ver como agentes da polícia catalã tentaram impedir fisicamente a entrada de elementos da Guardia Civil (dos quais foram destacados cerca de 12 mil agentes para a Catalunha, chegados de todo o país) numa assembleia de voto em Sant Joan de Vilatorrada.

Agora, muito do que se passou está nas mãos da Justiça. Neste momento, já há seis investigações abertas contra os Mossos d’Esquadra na Catalunha. Além disso, os cinco maiores sindicatos policiais espanhóis prometeram que vão fazer uma queixa judicial contra a polícia catalã, com particular menção ao seu chefe. Para já, a liderança da polícia catalã mantém-se em silêncio. O governo regional da Catalunha, nem tanto. Ainda o dia não tinha terminado, já a Generalitat apelava aos feridos que fizessem queixa da polícia aos tribunais. Para já, entre os 844 feridos, 73 deles seguiram a recomendação.