Nunca tinha ido ao Vodafone Mexefest. Antes de começar este texto, achei importante fazer o reparo, já que este festival consegue ser diferente de todos os outros em que estive. Existe desde 2011, mas o meu conhecimento sobre o que por aqui acontecia resumia-se a relatos de amigos.
Não há nenhum motivo em específico que justifique nunca ter feito parte deste público: por lá já passaram muitos artistas que admiro e até já aconteceu descobrir músicos de que gosto e, só depois, perceber que eles já passaram por aqui. A razão de nunca ter participado nesta festa da música alternativa tem tanto de aleatório como de simples — nunca calhou. Este ano, porém, senti que era altura de mudar isso. Bom, eu e o meu chefe.
Filas gigantes e sobreposições de horários: estes eram os principais defeitos que mais me chegavam aos ouvidos, mas à medida que caminhava em direção à zona dos Restauradores — o epicentro do festival –, esses argumentos nem chegavam a surgir na cabeça. O cartaz era interessante, com artistas e géneros musicais que normalmente não se veem nem ouvem, não todos juntos, e isso bastava para criar entusiasmo.
“Não é melhor fazer um plano daquilo que vamos ver?”, perguntaram-me. Não sabendo da confusão em que me estava a meter, ripostei com uns círculos desenhados no horário da festa, a realçar as atuações a não perder. Oddisee, Songhoy Blues, Manel Cruz, Valete, Hinds e Orelha Negra eram os escolhidos. “Isso não vai correr bem”, avisaram. Porque não haveria de correr? Num outro festival qualquer, ver oito concertos num dia não seria nada do outro mundo, especialmente tendo em conta que as performances seriam mais curtas que o normal. Confiante, segui para o primeiro recinto (existem 13 no total), o renovado Cine-Teatro Capitólio onde Oddisee estava prestes a começar.
“O meu nome é Amir Mohamed el Khalifa, mas é mais fácil chamarem-me de Oddisee”, brincou o norte-americano depois de concluir o primeiro tema do concerto. “O meu pai é sudanês e a minha mãe é afro-americana: conseguem imaginar uma melhor combinação de fatores para alguém que vive nos EUA?”, acrescentou. Por esta altura, tudo corria bem. Muito bem, até, dado que esta era a primeira vez que o rapper de Washington D.C. pisava terras lusas. A casa demorou a encher, mas em pouco tempo formou-se uma multidão agradável que dançava ao som de hits como “Like Really” ou “After Thoughts”. O rap inteligente que ora tocava ao de leve no trap (mais eletrónico) ora rasava o boom bap (mais baseado em samples e batidas fortes) fazia o chão estremecer e a cabeça abanar. “Temos de ir andando, o outro está quase a começar”, disseram-me. Foi neste momento que percebi que as sobreposições de espetáculos podiam mesmo vir a ser um problema.
Com passo semi-acelerado segui para a Casa do Alentejo, espaço onde os Songhoy Blues já deviam estar a espalhar magia rítmica. Se já tinha dado para perceber que havia muita gente na rua, ao chegar à pequena porta do recinto que se seguia, vi que havia mesmo, mesmo, muita gente a circular pelo festival. A Rua das Portas de Santo Antão, a mesma onde fica o Coliseu dos Recreios, estava com tantas pessoas que até os senhores que nos tentam impingir refeições “very tipical, mucho tradicionales” pareciam ter desaparecido, engolidos algures pelos melómanos que circulavam — e formavam fila para entrar.
Ouvia-se festa de música negra que acontecia nos andares superiores da Casa do Alentejo. Depois de algum tempo de espera, já o concerto ia a meio, lá foi possível entrar: ou pelo menos parecia, já que ao chegar ao pátio interior desta casa vi que outra fila, desta vez ainda mais compacta, esperava por conseguir ver o grupo do Mali. A ideia de assistir ao concerto, portanto, saiu fora das opções. O relógio aproximava-se das 22h40 e Manel Cruz, ex-vocalista dos Ornatos Violeta, estaria quase a subir ao palco do Tivoli BBVA. Foi neste momento que me lembrei das tais duas coisas más que acontecem sempre no Mexefest: não ter tempo ou espaço para ver concertos. Querem ver que era mesmo verdade?
“Estou com os pés que já nem aguento”, ouvi a meio caminho de chegar à belíssima sala onde Cruz ia tocar. Depois de subir e descer ruas com alguma celeridade, o cansaço começava a dar sinal. Estoico, fiz por ignorar. O Manel merecia o esforço.
Quando finalmente cheguei, depois de ter atravessado uma atuação ao ar livre (e em constante movimento) dos Kumpania Algazarra — passaram o tempo todo a fazer esta espécie de mini-concertos espontâneos ao longo da Avenida –, temi por momentos não conseguir lugar. Por sorte, acabei por dar com uma cadeira solitária, ainda por cima bem feita e confortável. Estava tudo pronto para começar. A audiência, que preenchia a casa quase toda, era diferente das outras, mais velha. Depois do público começar a soltar uns quantos “Manel! Manel!”, o grupo lá apareceu e trouxe muito do que se pode ouvir no trabalho mais recente do nortenho.
Depois de um incial banho de aplausos, Cruz relembrou-nos a todos do enorme talento que tem não só a construir letras como a dar-lhes vida com a ajuda de instrumentos. Muito centrada nas suas novas canções — como a “Ainda Não Acabei”, por exemplo –, a atuação prometia, mas mais uma vez, os horários foram proibitivos: no Capitólio, Valete preparava-se para atuar.
Por esta altura, a noite parecia não estar a correr bem. Sentia que já tinha “estado” em vários concertos, mas que na verdade ainda não tinha “visto” nenhum, já que assim que começava a instalar-me, “tocava o despertador” e lá tinha de voltar a correr em direção a novo espetáculo. Para ajudar à situação, a fome já me trocava as voltas, tanto que a caminho do Valete, tive de passar por um quiosque para comer qualquer coisa.
“O que é que tem aí de mais rápido para servir?”, perguntei. Para meu desalento, nada mais restava sem ser um queque (gigante, pelo menos) de canela. “Pode ser, eu levo”. E foi assim que comi um bolo durante um concerto de hip-hop. A primeira trinca deu-se ao som do famoso “Canal 115”. Pouco depois, as centenas de pessoas que foram ver o rapper português tiveram direito a um rápido regresso ao passado quando Valete voltou a matar George W. Bush e novamente tomou de assalto a Casa Branca. Ouviu-se a canção “Fim da Ditadura”, entenda-se. Houve ainda tempo de ouvir a nova “Johnny Walker”, uma amostra frouxa de um fogo humano que já viu dias mais intensos. Depois de limpas as migalhas, voltou a ser preciso mudar de localização.
Já me tinham dito para não deixar fugir os concertos na Estação Vodafone FM, largo adjacente à Estação do Rossio. Por ficar no topo de uma ligeira inclinação, este palco consegue ficar enquadrado perfeitamente com o Castelo de São Jorge, por exemplo, fator que serve de brinde a qualquer concerto que ali aconteça. Foi com este cenário que as franzinas Hinds começaram a tocar. Estas raparigas, que simpaticamente nos perguntaram se preferíamos comunicar em inglês ou em espanhol, são de Madrid e, com uma atitude muito rock’n’roll, desarmam qualquer multidão. Por muito que alguns problemas de som inesperados possam sempre acontecer, alguém devia ter tentado ajudá-las logo ao início, quando surgiram os primeiros sinais de que algo não estava bem.
Sabendo que estas princesas do lo-fi ainda só lançaram um álbum de originais, o Leave Me Alone, não foi de estranhar que tivesse predominado no alinhamento das canções. “Garden” e “Solar Gap”, por exemplo, foram alguns dos temas que apresentaram a um público surpreendente (em número e capacidade de fazer coro).
Um misto de inconformismo e desilusão ia tomando conta de mim. Os concertos estavam a ser ótimos, a deslocação entre palcos podia ser cansativa, mas fazia-se bem… tudo apontava para que, depois da atuação dos Orelha Negra, seguiria direto para casa. Porém, quando cheguei ao Coliseu dos Recreios, surgiu uma epifania. “Espera lá”, pensei. Encostado à mesa de som, lembrei-me que tinha estado a orientar-me como se o Mexefest fosse um festival normal… mas a verdade é que não é. Antes de conseguir desenvolver melhor esta linha de pensamento (já lá voltamos) as luzes baixaram e de repente, Sam The Kid e companhia assumiram os seus lugares no palco.
Logo ao arranque, mais uma confirmação de que este é, muito possivelmente, um dos projetos mais criativos e originais na atualidade da música portuguesa. Apresentando apenas temas instrumentais, esta turma pintou a manta e fez do Coliseu um dos sítios mais animados da noite. Toda a gente dançava e saltava ao som de sucessos recentes como “A Sombra” e outros mais antigos como “Throwback”. Quando as luzes voltaram a acender e todos começaram a fazer-se ao caminho em direção a casa (ou talvez não), eu regressei à linha de raciocínio que estava a desenvolver.
O Mexefest não é um festival normal, certo. Mas então é o quê? É bem mais uma concentração de vários concertos. Parece uma simples diferença de palavras mas não é. Aqui não dá para ver quatro bandas de seguida enquanto se come um kebab. Para tirar o máximo desta experiência é preciso consultar o cartaz com antecedência e atenção, para não cair no mais óbvio dos erros: não conseguir ver um concerto do início ao fim.
Boas notícias? Este sábado há mais. E é sempre bom ter uma segunda oportunidade.