A primeira ronda de Vodafone Mexefest tinha deixado algum desilusão. Por um lado, a dinâmica da coisa era cativante — quanto mais não seja porque significava festa mesmo ao pé de casa — mas a constante sensação de que estamos sempre a perder alguma coisa era stressante. Não gosto que a minha dose de festival de música seja servida com ansiedade como guarnição, por isso, decidi enfrentar o novo dia de forma diferente, até para perceber se aquela coisa de “a vida é feita de segundas oportunidades” é mesmo verdade.
O sábado começou preguiçoso, mas mesmo assim fiz por pôr em prática a preciosa lição que aprendi no dia anterior: não subestimar o planeamento. Aqui não vale a pena ter-se mais olhos que barriga e querer ir a todas, daí ter escolhido cinco concertos que queria mesmo ver e assinalado outros quatro como “suplentes” (no caso de algo falhar, sempre tinha um plano B). Assim foi: às 19h estava já no meio da modesta multidão que esperava pelo Conjunto Corona.
Para quem não os conhece, os Corona são uma espécie de Beastie Boys em versão portuguesa. Rimam sobre bairros problemáticos do Porto (“Mafiando Bairro Adentro”), a falta de bacalhau à mesa (“Noite de Natal em Cimo de Vila”) e pontapés nas costas (“Pontapé nas Costas”), por exemplo, sem nunca descurarem o capítulo dos instrumentais. Pelo que já deve ter dado para perceber, estes temas ficam sempre suspensos no limbo do “nãããã, eles estão a gozar” e o “isto tem de ter alto significado filosófico, de certeza”. Seja como for, são a única banda deste cartaz que já vi mais que muitas vezes e sempre que posso não os deixo fugir. Com eles há festa garantida e no Capitólio não foi diferente.
Entre gritos por “GON-DO-MAR!” e a distribuição de shots de hidromel, os 50 minutos de concerto passaram a correr e não houve ninguém que ficasse indiferente à boa disposição que se viveu, até mesmo aqueles que no meio do público exprimiam a cara clássica de quem não faz a mínima ideia de como foi ali parar. “Ao menos rendeu uma bebida”, disse um garoto à saída da sala.
“Assim, sim!”, pensei. Finalmente conseguia ver um concerto do início ao fim e ainda tinha tempo para comer qualquer coisa. Desculpem senhoras que ontem me venderam um queque, hoje merecia algo mais substancial. “Queres ir ver Iguana Garcia?”, perguntaram-me. Olhei para as horas, depois desdobrei o horário e afirmei, confiante, “claro”, ainda tenho tempo. Uma bela bifana depois, lá fui parar ao parque de estacionamento da EPAL para ver um tipo alto, de camisa a puxar ao tropical, dar um autêntico one man show de eletrónica dançante. “Tocava” computador, teclado e guitarra, tudo quase em simultâneo. Pelo meio até conseguiu atirar para o público uns quantos CDs seus — “Desculpem, não quero matar ninguém!” O concerto que se seguia era o de Cigarettes After Sex, no Coliseu dos Recereios.
Ao ver a fila de gente que perfilava ao longo da rua, dava para perceber que este era um dos pontos altos do dia. Enquanto esperavam por entrar, os festivaleiros aproveitavam para trincar qualquer coisa. Do hamburger à barra de cereais, a ementa era variada.
Já lá dentro, nem a escuridão quase total me impedia de ver que mais uma vez fui enganado: “Então mas o vocalista não é uma mulher?”, pensei. Quando vi os Rhye pela primeira vez, também tive esta mesma sensação e achei que nunca mais iria cair no engano. Não que fizesse alguma diferença, mas uma pessoa ouve uma voz melosa ao ouvido, começa a colar-lhe o rosto que a imaginação criou e depois não é nada do que se estava à espera. Bem, que todos os problemas fossem esses. Vamos é prestar atenção ao concerto.
Quando começo a acreditar que a palerma frustração do início se dissipou, percebo que o concerto já leva uns bons 15 minutos e contudo, a música que se ouve parece ser a mesma. Acredito que da mesmo forma que a ocasião faz o bandido, também o ambiente constrói sentido em volta da música. Ao sair da plateia, enquanto toda a gente mantinha o punho em riste com o telemóvel a filmar tudo (já alguém voltou a ver um vídeo que gravou num concerto? Sempre me questionei sobre isso…), ouvi a expressão que melhor caracterizava o que estava a achar do concerto: “Eles são melhores no Spotify”. Touché.
Manel Cruz? Sim. Orelha Negra? Claro que sim: a primeira noite de um novato no Mexefest
Virado para a Praça dos Restauradores, sentei-me para comer umas castanhas. Enquanto lutava por descascar uma das últimas, vejo, do outro lado da rua, um autocarro daqueles bem grandes a abarrotar de pessoas. Olho para o meu fiel horário e percebo que estava perante um dos ex libris do Mexefest: um autocarro igual aos que usamos todos os dias mas que é transformado em sala de concertos sobre rodas. Da mesma forma que não se vai a Roma sem se ver o Papa (se ele lá estiver), não podia estrear-me neste festival e não embarcar na carrinha do rock do rock’n’roll.
Entrei pouco antes dos Panado começarem a tocar, ainda sem estarmos em movimento. Embalado como uma sardinha numa lata, fui tentando anotar o nome das músicas que estes miúdos cheios de genica iam tocando. Por culpa de um senhor que não parava de girar a cabeça e saltitar no mesmo sítio, tal não foi possível, mas também não fez mal. O rock lo-fi à lá Pavement/Arctic Monkeys que iam debitando tornava difícil pensar fosse no que fosse. Não podia estar mais correta a pessoa que me contou que ali dentro só existe Vodafone Mochefest. Uma das experiências mais agradáveis do festival — por muito que quase me tivesse ensurdecido.
Quando cheguei outra vez ao Capitólio, Halloween já atuava. Rodeado pela sua crew e semi-escondido por debaixo de um capuz preto, este homem que deve andar na casa dos 30 mas parece ter uns 70 mostrava o porquê de ser considerado um dos rappers mais influentes do país. Os instrumentais pesados e as letras inteligentíssimas fizeram a delícia de quem o tinha ido ouvir.
Foi uma energia intensa como esta que encontrei também no palco virado para o Castelo, durante a atuação dos Liars. Espantoso o poder da mistura que estes australianos fazem entre a eletrónica e o mundo das guitarras elétricas. Nem mesmo o facto de o vocalista estar a usar um vestido de noiva foi capaz de desviar atenções da música que se ouvia. Na verdade, é capaz de ter sido apenas mais um ponto a favor do concerto.
O responsável por fechar o festival foi o já famoso Moullinex, mestre do eletro-pop português. Tocando com a banda e uma mão cheíssima de convidados, Luís Clara Gomes (homem que parece uma fotocópia do chef José Avillez) transformou o Coliseu dos Recreios numa autêntica discoteca banhada por sonoridades disco-fun-qualquer-coisa. Que festão se fez ali naquele sítio onde até já circos verdadeiros foram montados. Toda a gente dançava: betos com pessoal do rap, rastafaris com pessoal do heavy metal… por uns momentos não houve ali mais nada sem ser amor. Não podia haver melhor maneira de encerrar dois dias de festa.
Escrevo este texto com um sorriso na cara: não só porque daqui a nada vou poder finalmente ir para a cama mas também porque senti que domei o Vodafone Mexefest. Depois de um início muito confuso percebi a dinâmica da coisa e construi o meu próprio aforismo em jeito de rima: “se queres ser festivaleiro, não sejas garganeiro”. Façam T-shirts com isto à vontade. Vi música muito boa a acontecer à minha frente, todos os géneros estavam lá e havia escolha para toda a gente. Isso é o melhor que se pode pedir. É ou não é?