Uma canção para fazer a diferença tem que gerar um “antes” e um “depois”. Antes de ouvirmos uma determinada canção éramos de uma determinada maneira, pensávamos “A” sobre “B”, sentíamos “isto” sobre “aquilo”; depois de a ouvirmos somos diferentes, já pensamos “C” sobre o mesmo “B”, sentimos “aqueloutro” sobre “aquilo” e sempre que escutarmos aqueles versos vamos responder-lhes emocionalmente como um cachorro faz quando toca a campainha. Nada disto é cerebral, nada disto é intencional, funciona assim, é inquestionável e ainda bem.
Os U2 fizeram um novo álbum, que é basicamente mais um entre os vários que têm feito. E o que quer isso dizer? Que o “depois” é exatamente igual ao “antes”. Ouvir Songs of Experience é o mesmo que não ouvir, nada muda, não se ganha nada, não se sente nada de especial. O bom fã vai continuar a gostar porque a voz de Bono permanece quase intacta (com as devidas, mas poucas, interferências provocadas pela idade), porque Edge continua a ter bom gosto no som das guitarras (só no som, as ideias são fracas), porque está bem produzido e tudo isso. Mas quando chegar a altura de comprar um bilhete para um concerto da banda, a razão nunca será este novo álbum, a razão será sempre tudo o que aconteceu antes, muito antes.
Isto não é pecado nem é surpreendente. Quantas bandas ou artistas conseguem fazer discos interessantes depois de 40 anos juntos? Os U2 não são exceção porque, ao que parece, os U2 não conseguem. E quem muito gostou dos U2 noutros tempos pode agora facilmente ficar naquela: “A sério? A sério que é isto que têm para dar?”.
Ao ouvir os novos temas, a grande conclusão surge logo a meio do primeiro e nunca é desmentida ao longo de todos os outros. Por estes dias, os U2 não têm grande coisa a dizer, ao contrário de outros momentos que lhes deram inspiração para fazer grandes discos, para querer mudar o mundo, para procurar conquistar tudo e todos, para questionar a filosofia existencial, a deles e a nossa. E isto não tem nada a ver com o facto de Songs of Experience ser sobre a vida e o amor. Assim de repente, não há temas mais importantes que estes dois, mas é preciso saber trabalhá-los.
Talvez Bono e companhia por esta altura não se deem bem com questões pessoais transformadas em rimas, não há nada de errado com isso, não podem é depois esperar que o resultado final seja surpreendente: não é, fica até bastante longe. E é uma pena porque as pessoas normais, nós que ouvimos aquilo que os artistas têm para dizer, precisam (muito) de alguma orientação em todas as ligas do campeonato emocional. Não conseguimos lidar com nada disto sem a música certa e assim os U2 não ajudam.
[“You’re The Best Thing About Me”:]
Não se ouve angústia, não se sente dúvida, não há nenhum sinal de que alguém está a fazer canções para sobreviver, que alguém está ali a cantar porque nada mais lhe resta, não há qualquer indicação de que naquela banda há pelo menos um tipo que não sabe o que fazer, não sabe para onde ir. Em vez disso, há frases óbvias e raciocínios previsíveis. Versos que podiam ser de qualquer um e de ninguém em particular. Parece um mural de aforismos para partilhar com hashtags: #U24ever, #U2saoamor e outros que tais. E isso não prende, não interrompe a respiração nem causa alterações no ritmo cardíaco.
Songs of Experience é, acima de tudo, um disco preguiçoso, claramente feito por quem trabalha nisto há muito, muito tempo — e nesse sentido tem o melhor dos títulos, “canções de experiência”. Quando quatro amigalhaços fazem canções há umas quantas décadas, é fácil juntar uns acordes, uns efeitos, rimar “sound” com “ground”, dizer “free yourself to be yourself” ou quadras desta categoria:
“I saw you on the stairs
You didn’t notice I was there
That’s ’cause you were talking at me
Not to me”
Bono quer ser um anjo da guarda, de noite e de dia. Em todos os temas, o ídolo transforma-se em arauto da boa viagem pela vida, uma espécie de Chagas Freitas da pop irlandesa mas com contas espalhadas pelas offshores deste mundo. E atenção que esta é uma contradição de pouca graça e muito menos importância do que a artística. Os U2 fizeram álbuns fora de série, mudaram as regras do jogo, inventaram e reinventaram-se várias vezes, de tal maneira que continuam a surgir novas gerações que vão atrás no tempo para ouvir outras gravações e pasmam-se com a categoria daquilo que encontram. Mas para encontrar um bom disco, um bom disco a sério, daqueles que — lá está — fazem a diferença entre o “antes” e o “depois”, é preciso rebobinarmos o tempo 20 anos até Pop.
[“The Blackout”:]
Porque ao nível das canções, Songs of Experience é mais ou menos isto: “Love is All We Have Left” é uma canção feita à medida da abertura de qualquer concerto, aquele tema que serve de banda sonora para esperar pelos mais atrasados a entrar no estádio. “Get Out of your Own Way”, “Red Flag Day” ou “The Showman” são perfeitas para programas de variedades na TV de fim de semana pós-almoço e nada mais. “Lights of Home” e “You’re the Best Thing About Me” mostram como estes quatro rapazes sabem bem que truques usar quando não há mais ideias a não ser as de gravações anteriores, para deixar o sabor de “onde é que eu já ouvi isto?”. Com “The Blackout” salvam um pouco a honra porque lá arranjam tempo para dizer que este mundo não está bem. E “13 (There is a Light)” é só mais uma prova de que continua a não existir nenhuma voz como a de Bono.
Mas e o resto, caramba? De que vale aquele vozeirão quando o investimento está quase todo no conceito visionário de mais uma digressão (e como esta gente tem sido visionária) e muito pouco na música? Porque a verdade é que ainda muitos se lembram do bom nervoso miudinho que era esperar por um novo disco dos U2. Só é triste que isso seja sobretudo uma lembrança.
Eles que venham, os U2 que venham a Portugal, que marquem as datas que quiserem nas cidades que entenderem (não, até ver não vêm, isso não está nos planos, mas era bem porreiro que estivesse). Vão vender os bilhetes todos e vão dar concertos notáveis, vão mesmo. Mas tal sucesso nunca vai acontecer à conta deste novo Songs of Experience. Nem do disco anterior. Nem do que veio antes desse. Enfim, melhor ficarmos por aqui nas contas de subtrair.