Um livro que nasceu de uma história mas que depois acabou por juntar duas. Um trabalho em banda desenhada que, numa primeira etapa, iria fazer parte de um número da revista literária Granta mas que, em pouco tempo, ganhou corpo próprio e vive independente, nas livrarias, a partir desta quinta feira. Coisas boas que acontecem sem aviso mas nunca por acaso. São as melhores. É uma questão de talento no sítio certo, na hora certa. Foi assim que surgiu Comer/Beber, de Filipe Melo e Juan Cavia.

A dupla assina textos e desenhos, é isso que têm feito na coleção de desventuras de Dog Mendonça & Pizzaboy, foi isso que fizeram recentemente com Os Vampiros. Os dois primeiros são super heróis improváveis que conquistaram o estatuto de ter três livros com os seus nomes na capa; o segundo é uma novela gráfica obrigatória, que viaja aos dias da Guerra Colonial e redesenha o conflito em África.

Comer/Beber teve uma origem diferente. Nasceu de um convite de Carlos Vaz Marques, diretor da Granta, para uma história desenhada, a ser publicada nas página da revista. A dupla sugeriu duas histórias e o livro a publicar esta quinta feira junta ambas. O título serve de chapéu: a primeira história, “Majowski”, adapta episódios verdadeiros que aconteceram à família da cantora, compositora e arquiteta Nádia Schilling, entre a Polónia e a Alemanha nazis dos anos 30 e 40 — e que envolvem uma garrafa de champagne guardada até ao limite do suportável. A segunda, “Sleepwalk”, é construída em ambiente de filme série B, numa América deserta nos anos 80, povoada por bombas de gasolina, restaurantes de beira de estrada e prisões de alta segurança — e há uma tarte de maçã que se transforma numa espécie de santo graal (e atenção que o livro inclui a receita da tarte).

Na fotogaleria acima, revelamos algumas imagens do livro. Nas linhas abaixo estão as respostas de Filipe Melo e Juan Cavia às perguntas do Observador (e começámos pela origem do livro). E, apesar de tudo isto, nenhuma das hipóteses substitui a leitura de Comer/Beber:

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“Comer/Beber”, de Filipe Melo e Juan Cavia (Tinta da China)

As histórias que fazem parte de Comer/Beber surgiram de um convite, de um desafio. O que é que isso mudou no vosso método de trabalho?
A revista Granta tem uma tradição de qualidade literária. Nós temos muita experiência a contar histórias de lobisomens obesos, mas literatura, nem por isso. Portanto, encarámos este desafio com muita responsabilidade, sobretudo isso. Sentimo-nos muito honrados por levar a BD até às páginas da Granta. O Carlos Vaz Marques lançou-nos este desafio, que era escrever um conto sobre comida e/ou bebida. E a partir daí, fazíamos o que quiséssemos. Este livro é o resultado.

Como é que uma história real é trabalhada e transformada em BD? Da mesma maneira que uma história de ficção?
Não. Neste caso, há menos liberdade. Envolve honrar a memória das pessoas reais, sem por isso perder a estrutura dramática e a narrativa que nos motivou inicialmente. Quando li a história do bisavô da Nádia Schilling, achei que seria o veículo perfeito para trabalhar outra vez com o Juan Cavia, dando a nossa própria interpretação do que se passou, na linguagem que conhecemos, a da BD. O que mais nos interessou da história real de Franz Majowski [e não contamos muito, referimos apenas que foi dono de um cabaret obscuro na Berlim nazi e que acaba de forma trágico-feliz] é que expõe uma série de contradições que existem nas pessoas verdadeiras. É uma história muito pessoal e emocionante, e foi uma honra que a Nádia nos deixasse pegar nela.

Juan Cavia e Filipe Melo (num desenho do primeiro)

Como reagiu a Nádia quando viu a história baseada no familiar dela?
A Nádia Schilling é uma grande amiga, uma pessoa de enorme talento — aliás, acabou de lançar um disco onde finalmente mostra ao mundo uma série de canções de sua autoria. Tivemos a sorte de a conseguir convencer a “emprestar” esta história. A Nádia esteve profundamente envolvida no processo de feitura do livro — na escrita, na investigação e no desenvolvimento deste capítulo.

Na introdução do livro, Carlos Vaz Marques escreve que os convites e os desafios por vezes servem de estímulo extra. Concordam? Fazem falta?
Em geral, sim. Percebi isso quando tivemos a responsabilidade de escrever para uma lendária revista, a Dark Horse Presents, uma publicação muito importante para nós. Houve vários estágios no processo. Primeiro, o terror; segundo, o bloqueio; terceiro, o “que se lixe”; e o quarto, a fluidez de ideias e muita liberdade criativa. Neste convite aconteceu exatamente o mesmo, e por isso decidimos juntar as duas histórias num só livro, um objeto que representasse o afeto que temos por estas histórias.

Serão vocês os dois uma espécie de duo dinâmico na BD em Portugal?
Nunca foi um objetivo ser o que quer que fosse. Somos duas pessoas que, por uma série de fatores e casualidades, teve a possibilidade de fazer algo que realmente gosta. Com essa sorte, vem a responsabilidade de uma entrega incondicional aos nossos livros e às pessoas que têm a pachorra de nos ler.

E como se mantém uma parceria quando há muito mais a acontecer no trabalho que ambos fazem, cada um por sua conta?
Cá vai um chorrilho de clichés: amizade, profundo respeito, crítica mútua, confiança e muita, muita droga.

E servem de boa dupla para comes e bebes?
Podem verificar por vocês próprios se nos pagarem um jantar grátis. Estamos disponíveis quando quiserem.

“Os Vampiros”: redesenhar uma história da Guerra Colonial